Eisner 2017: Dark Night

5.0

NOTA DO AUTOR

O discurso memorialístico perpassa como poucos minhas entranhas, sobretudo quando não se vende como verdade incontestável ante o factual, mas tão somente como uma dentre muitas, a face oculta do que está visível a olho nu. Realidades fabricadas com um pé no cotidiano, que suscitam o imaginário de outrem na via da escrita, ou mais cedo, na linguagem, a memória, a vontade de lembrar, de conservar algo precioso para a sociedade ou para o sujeito, instilando-o a sobreviver ao arbítrio incontrolável do tempo.

De outro modo, se esquecer é uma forma de morte em vida, lembrar seria permanência na longa duração e a experiência que deseja ser publicada é colocada em perspectiva em autocrítica e homenagem. Desde que estamos pensando em palavras, existe a memória ficcional, a base do que se considera a escrita biográfica e autobiográfica. Como disse, esse tema mexe comigo de ponta-cabeça e, não por acaso, foi diretamente responsável por cravar nos últimos anos Os Ignorantes (2014) e Pílulas Azuis (2015) como as melhores histórias em quadrinhos desse modesto resenhista.

Ironicamente, Dark Night: A True Batman Story, de Paul Dini e Eduardo Risso, repete os ingredientes supracitados, acionando minhas papilas gustativas como poucas histórias fizeram nesse passado recente. Essa graphic novel original traz consigo um corajoso relato de Dini sobre um dia de meados de 1993 em que sofreu um espancamento aleatório e teve sua face parcialmente destruída por dois agressores. Contudo, a obra não se debruça única e exclusivamente na repercussão dessa violência, embora, claro, ela seja o instrumento que permite racionalizar velhas feridas emocionais.

O tom confessional adotado pelo roteirista funciona como uma postulação dele próprio, reclamando uma identidade para si e a busca de registro como um trabalho de ordenação, rearranjo e significação do trajeto de uma vida no suporte do texto, criando-se, através dele, um autor e uma narrativa. Nesse contexto, o próprio Dini tem diversos pensamentos laterais e apresenta sua história como se o imaginário gothamita estivesse interagindo com ele, no nível do que Eddie Valiant ou Frank Harris experimentam em Uma Cilada para Roger Rabbit (Who Framed Roger Rabbit?, 1988) e Mundo Proibido (Cool World, 1992).

De início, Dini contextualiza fragmentos da infância com o leitor, demonstrando-lhe as engrenagens de sua cabeça – ou, vá lá, das nossas próprias. E é logo ali, no imaginário infantil, representado nas sutilezas irônicas do traço de Risso, que já residiam em Dini as mais profundas crenças, ilusões, feridas, fantasias, percepções, projeções, projetos e sonhos. O exame do imaginário da criança em Dini proporciona uma decodificação de ferimentos nunca cauterizados [decorrentes do bullying], potencialidades desperdiçadas [socializações extraestúdio] e, também, da criatividade e o poder de transformação humano. Quer dizer, é lá atrás que sentidos e percepções de mundo são forjados, mormente com maior sensibilidade/profundidade – e isso vale tanto para Dini quanto qualquer um.

Como medidas inconscientes de autopreservação, o jovem Dini cria histórias, guarda para si crenças que não são suas, deixa-se levar pelo mundo dos “adultos”, sofre em silêncio ou irrequieto, todavia não desiste de seus propósitos, quais sejam: ser honrado em seus espaços e amado pelos resultados do trabalho. E quanto a isso, sem falsa modéstia, Dini admite em mais de uma ocasião sua felicidade e sorte de poder fazer o que gosta e, principalmente, de fazê-lo bem. Segundo o próprio, isso não seria possível sem a camaradagem e atuação conjunta de equipes criativas, mas impraticável sem a compreensão dos pais e a sabedoria onipresente do produtor Alan Burnett.

Entre uma coisa e outra, também, saltam aos olhos conversas de bastidores na icônica Batman Animated Series, a exemplo do enredo rejeito de um episódio com a participação especial de Morpheus e Morte – nascido após o ataque. Nesse ponto da história, as intervenções dos amigos imaginários passam a ser mais constantes e repressivas¹, questionando-o acerca da relevância de sua arte que, via de regra, era levada a cabo sem mensurar limites ou considerar o preço que a vida pessoal pagava.

¹ Trechos estes materializados, na maioria das vezes, pelo Coringa; que desempenha aqui o mesmo papel que o imortalizou na ficção.

A transmissão do testemunho faz de Dini um corredor do essencial com engajamento e interação com o público leitor, fazendo, nesse caso específico, às vezes de um autor performático de autoficção, ou seja, estaria construindo a si e ao próprio texto ao mesmo tempo. Essa verdadeira invenção de si aproxima a autoficção da psicanálise, pois o sentido de uma vida não se descobre e depois se narra, mas se constrói na própria narração. Logo, Dini cria uma ficção de si, e essa ficção não é verdadeira ou tampouco falsa, é apenas a ficção que criou para si mesmo.

Tal qual a literatura, os quadrinhos são também canais que conjugam, admitem e transformam imagens internas, que podem vir a conferir novos significados a histórias e imagéticas tradicionais, ampliando, inclusive, a consciência e o sentido de vida dos indivíduos. Dark Night vai por esse caminho, indicando novos rumos [pessoais] para Dini e, até mesmo, para o Batman como representação abstrata da perseverança humana.

***

Antes de ir, quatro coisas:

(1) Gostaria de registrar que Dark Night foi meu quadrinho predileto [emparelhado com Parker: A Organização] em 2016, inclusive, desde já, franco candidato na categoria ao qual foi indicado no Eisner Awards 2017, Melhor Não-Ficção. Sobre os preferidos da casa, ouça, também, o 7 Jagunços #5, com o nosso Best Of do ano passado.

(2) Nada disso seria possível não fosse a arte de Eduardo Risso, que tem o mérito de transpor todo o surrealismo atrelado ao testemunho de Dini. O que, pensando bem, poderia ter abarcado, também, o ponto de vista do artista sobre o roteiro ao qual estava trabalhando para dar vida, numa pegada metalinguística, a quatro mãos.

(3) Estamos diante de uma rara participação da figura do Batman numa edição do selo Vertigo, destinada a um público mais maduro, algo que por si só, dá o que pensar. Afinal de contas, por que tal prática não é incentivada? Digo, por que não publicar, corriqueiramente, Batman em títulos com temática para maiores? Evidentemente, o personagem dá azo para narrativas mais calcadas no urbano [e no leviano?!], longe do fantástico presente nas revistas de linha. Nesse sentido, Dark Night pode ser compreendida como uma semente que, em algum momento, tem a obrigação de germinar.

(4) Por último, a Panini tem o imperativo moral de publicar esse material, que além de ser mercadologicamente promissor, revela uma relevância conceitual que contrasta com a esmagadora maioria dos quadrinhos super-heroicos, desempenhando, por que não, uma função social, uma aptidão moralizante capaz de comover e remir leitores em condições análogas às do autor.

E a vida mostra que não são poucos. Não somos poucos.

 

  

Roteiro: Paul Dini

Arte: Eduardo Risso

Editor: Shelly Bond

Capa: Eduardo Risso

Publicação original: Dark Night: A True Batman Story

No Brasil: Inédita

Nota dos editores:  5.0

 


  iTunes   Fale com a gente!

Um comentário sobre “Eisner 2017: Dark Night

Deixe uma resposta