Pense Num Gibi Ruim: A Saga de Ajax, o Caçador de Marte

4.0

NOTA DO AUTOR

Vez ou outra me bate aquela vontade de reler ou ler pela primeira vez as origens dos grandes personagens da DC Comics pós Crise nas Infinitas Terras. Você sabe, né? Crise fez aquele escarcéu miserável, apagou muita coisa, matou meio mundo, enfim, lascou com tudo. É claro que depois tinha que contar as novas origens, dar aquela retconeada básica, consertar umas coisas aqui e ali e preparar os heróis pro futuro até foderem tudo novamente… Sendo assim, a DC chamou uns autores pra fazer esse trabalho. Como não poderia deixar de ser, a trindade tem as histórias mais conhecidas: Batman Ano Um de Frank Miller (por muito tempo, o único que era republicado com alguma regularidade), Mulher-Maravilha: Deuses e Mortais de George Pérez e O Homem de Aço de John Byrne. (Aliás, a primeira vez que a reformulação do Superman saiu em formato americano foi pela Mythos em 2006, vinte anos após a publicação original.)

O Flash ficou lá na mensal dele até Mark Waid fazer o que fez; Aquaman teve sua minissérie em quatro partes escrita pelo Peter David; do Lanterna Verde temos “Amanhecer Esmeralda”, que até ganhou continuação. Essa daqui é a do Ajax, ou se preferir, J’onn J’onzz, o Caçador de Marte. Assim, temos as novas origens dos sete maiorais pós Crise. Lembrando que apenas a do Aquaman não saiu por aqui.

J. M. DeMatteis (junto com Keith Giffen) é sempre muito associado a personagens icônicos e inesquecíveis como G’Nort, L-Ron, Manga Khan e Maxwell Lord: (quase) todo mundo sempre lembra do escritor por causa de sua celebrada passagem pela Liga da Justiça (a Liguinha), que teve gibi próprio por aqui, local onde saiu essa minissérie do Ajax. No entanto, DeMatteis escreveu, por exemplo, A Última Caçada de Kraven e Moonshadow, gibi espetacular do selo Epic Marvel relançado a pouco no Brasil. Em resumo, DeMatteis tinha gabarito e currículo pra brincar à vontade com qualquer personagem. Tinha tanto potencial quanto os medalhões citados acima. E convenhamos, Ajax num era essas cocadas toda. Se desse errado, quem ligaria? O cara nem do desenho dos Super Amigos participou. Perdeu pro Chefe Apache, pro El Dorado e nosso estimado Vulcão Negro. (J. M. DeMatteis reformulou mais um personagem pós-Crise: Sr. Destino, sendo responsável pela minissérie (também em quatro partes) que reintroduziu Kent Nelson e Nabu na nova continuidade e pelos 24 primeiros números da revista mensal – boa parte, inclusive, foi lançada no Brasil na saudosa DC 2000. Um podcast sobre essa fase? Você não perde por esperar.)

Com isso em mente, e observando de perto a invasão britânica nos gibis estadunidenses – revirando do avesso alguns personagens esquecidos/restolhos -, J. M. endoidou. Virou-se pro desenhista Mark Badger e disse: a hora é essa! DeMatteis mostrava já aqui algumas coisas que ele ia extrapolar em outros trabalhos seus. Mas antes de enveredar por essas coisas da história, vamos falar um pouco da arte. Badger fez tudo: desenhou, artefinalizou, coloriu, bateu o escanteio, cabeceou pro gol e partiu pro abraço. Boa estratégia. Assim ninguém mais seria culpado pelas bostas que ele fez. Se você viu as figurinhas ao longo do post, foi brindado com uma prévia da arte. Um troço meio estilizado, meio quadradão na Geometria, estilizado do jeito errado, um Romitinha bizarro, dos pobres e bem ruim.

É claro que essa imagem acima é oportunista: o Ajax tá assim meio borrachudo e geométrico por causa da história. O Batman tá num traço meio original, mas repare como os ombros dele faz um ângulo reto (literalmente e por ter 90 graus) com o pescoço. Nessa primeira parte, vemos um Ajax doidão, se desfazendo, quase virando fumaça, sem saber o que peste tá acontecendo. Além disso, tá tendo umas alucinações meio lisérgicas, numa viagem total. Tava maconhado, como diria minha mãe. Antes disso, vemos mais uma noite em Gotham City. Batman está caçando um psicopata assassino de crianças que não tem noção do que faz, devido à alucinações. Esse tom mais adulto, sombrio e viajado é a tônica de toda a minissérie. Não por menos, o assassino se mata quando percebe os crimes que vinha fazendo. A cena que ele cai na real é bem rápida. Um papinho com o Batman, ele tem aquele estalo, fica mal e se joga. Nesse momento, aparece o Ajax, nessa imagem aí de riba. Depois de se estabilizar, parar de virar fumaça, a dupla começa a palestrar na Batcaverna. Aqui tem uma doideira da daquelas… É melhor citar literalmente:

“Sei apenas que estou assustado… E necessito de um amigo! Eu não tenho muitos!”

O cara tem poucos amigos e o que ele procura é o Batman! Errou uma de uma! Acho que até o Morcego segurou o riso. Rapidinho a conversa para, porque Ajax se liga que fez uma merda: colocou o Batman em perigo (você tá entendendo, né?). E daí, como se tivesse em abstinência de drogas, ele começa a lutar com algo que só ele tá vendo, com mania de perseguição. Nisso ele fala algo em marciano e mete a mão nas fuça do Morcego pra poder sair dali. Lógico que ele pega leve: um murro seu mataria um humano (isso quem diz é o Batman e não eu). E o que o Morcegão faz? O que o Ajax deveria ter feito desde o começo: vai procurar a Liga da Justiça. Mas a Liga só vai aparecer no final (é claro). Até lá, o marciano fica zanzando pela cidade, doidão, queimando de febre (não me pergunte de sua fisiologia), vendo umas alucinações que tomam a página inteira, de uns deuses marcianos ou algo assim que começam a cobrá-lo por ter deixado seu planeta natal e vai contando, devagarinho, detalhes de sua origem, como sua relação com o Dr. Erdel.

Em Nova York, a LJI suspeita de uma célula que o marciano teria absorvido em outra história. Sabe aqueles asteriscozinhos? Pois é. Nisso, o Capitão Átomo começa a questionar como bexiga vão achar um caboclo que fica invisível, é telepata e transformo e o Batman, o nosso Batman, aquele Batman, o manda tomar naquela canto. Venha se quiser. Eu tava aqui pensando: essa seria uma boa hora pra acabar com essa origem marciana dele. Tudo bem que teria que mudar o nome original (Martian Manhunter, que é arretado), mas é um personagem que ficou grande meio que na marra, convenhamos. Mudar o nome e o status quo não ia gerar celeuma ou histeria coletiva. Iam reclamar, mas como não tinha internet, no máximo iam receber algumas cartas. Bicho, o cara perdeu lugar na Liga (Novos 52) pro CiborgueQuem porra ainda levava a sério marcianos em 1988? Isso funcionava legal nos anos 1950, quando ele foi criado. Depois disso, não colava mais, né? Porra, Marte é aqui do lado. Em 1988, você demorava mais pra ir de Maceió pro Rio de Janeiro do que do Cabo Canaveral pra Marte.

E nos próprios gibis mesmo, com heróis indo pros confins do universo, outros alienígenas aparecendo aqui pra nos destruir e você ainda com essa conversa mole de último marciano, que tudo lá se extinguiu, ele veio de um passado distante e blá-blá-blá. Não, bota a origem dele lá pras bandas de lá de baixo. Ou cria outra galáxia ou mete ele em, sei lá, Saturno. Se bem que, na cronologia da DC Comics, Saturno não pode, como me lembrou Joelão:

Além disso, os marcianos cinquentistas eram muito mais legais do que o Ajax. Sobretudo aqueles dos filmes B de ficção científica, o gênero cinematográfico das pessoas de bem. Melhor exemplo ever:

Mas sim, J’onn J’onzz continuava doidão pela cidade, com suas alucinações e viagens erradas. E como as drogas parece (PARECE) que ajudam a aflorar sua veia artística, ele ficava recitando poesias. Tudo isso em pensamento, claro, mas lembre-se que ele é um telepata. A segunda parte começa com ele mandando coisas como “Trovão nos céus… Demônios na chuva. A angústia de um coração em chamas”.

É onda minha, isso é recordatório do J. M.; não é o marciano pensando, não. Nessa bagaceira toda, ele chega em Chicago, onde está rolando uma exposição sobre seu planeta natal. E aí começa a lutar contra seu demônio interior, que o ataca com fogo. Mais doideira, mais loucura. Nesse momento, Besouro Azul e o Batman finalmente o encontram. Nisso, Ajax descobre quem está o endoidando: H’ronmeer, inimigo clássico do Caçador, uma espécie de lenda infantil marciana, “deus da morte e do fogo”. Seria o bicho papão deles. Ele fica tão alucinado que acaba saindo da Terra e lá no espaço sideral, Batman, Besouro Azul e o Sr. Milagre o capturam de volta, trazendo pra dentro da nave. O “psicômetro” da nave faz uma leitura da cabeça do marciano e assim descobrem que tem algo dentro do quengo de Ajax que não tá certo. Calando minha boca, Batman mostra-se muito preocupado com o estado do amigo e com a engenhoca que Scott Free usa pra examinar o marciano.

Obviamente, H’ronmeer também está na embaixada de Roma (é onde eles pousaram), no melhor estilo alma penada. Nocauteia o Besouro e o Gladiador Dourado na mesma página e o Soviete Supremo na outra. Aliás, essas duas páginas são quando J. M. deixa seu humor desabrochar. Afinal, é a Liguinha. Ah, o Batman também cai rapidinho. O Sr. Milagre é o único que não cai matando em cima do bichano, pois compreende (ou é enganado) o que tá se passando. Por conta disso, leva o nome de traíra de Ajax. Achei injusto. No pau com o bicho papão (não é bem uma briga, tá?), o marciano vai parar no Colorado, onde mora o Dr. Erdel.

O título da terceira parte é “Quem Sou Eu?” e já diz tudo. Vamos lá saber o que diabo tá acontecendo. Dr. Erdel, que era pra tá morto, é o cientista que trouxe o Ajax pra Terra. Relaxe que quase ninguém sabe disso também. DeMatteis utiliza o encontro desses dois personagens muito ligados ao marciano pra fazer algumas revelações de seu passado, mas bem do seu jeito: todo onírico, cheio de questionamentos, de lembranças espaças… Não espere didatismo , ainda. A única coisa que ele entrega de bandeja você sabe: o celeuma com o fogo.

Ele cita por alto a filha do Caçador de Marte e o pai – este é falado desde a primeira edição. Como sempre acontece, o marciano dá um grito federal, se livra do bicho papão e até volta a falar na sua língua natal. E, claro, salva o Dr. Erdel. Outra coisa que é falado é sobre uma praga que assolou Marte e os mortos foram incinerados. Estilo Peste Negra, sabe. Daí Ajax não lembra se tem trauma do fogo ou realmente faz mal. Talvez por interferência editorial, DeMatteis parte, enfim, pro didatismo. Erdel – que é doutor em porra nenhum, como ele mesmo explica – fala de seus sonhos com outros planetas, aquele típico leitor de FC ultra fanático. Com isso – e estudando sozinho -, investiu seu dinheiro numa máquina pra explorar o cosmos. Apontou pra Marte – alô 1950 – e POW!!!! Ao invés de uma ameba, surge Ajax carregando sua filha morta nos braços.

O doutor enterrou a filhota e começou a cuidar do marciano, que tava bem ruim. Recuperado, ao invés de voltar, Ajax destruiu a geringonça. Dessa forma, ficamos sabendo que J’onn J’onzz tava doidinho da Silva quando chegou de Marte. Pra esquecer as coisas ruins que deixou pra trás, bloqueou o passado em sua mente e, com a ajuda do doutor de araque, recriou novas memórias. Baseado em que? Nos livros de FC dos anos 50, claro. Daí essa vontade dele em ser herói. Genial, confesse.

Por ser telepata, o marciano acabou projetando pra Erdel suas memórias enquanto ardia de febre. Por isso o doutor sabe todo o seu passado. Passado esse que resolveu voltar de vez, desbloqueando sua memória. Por isso que Ajax tá assim, perturbado do juízo. Aí descobrimos que o doutor o nomeou de Ajax e que reconstruiu a geringonça. Como disse acima, em 1988 todo mundo já sabia que Marte era desabitado, que os canais não existiam e tudo mais. Em um único pensamento, o marciano resolve isso: a máquina o fez viajar no espaço E no tempo. Assim, é lógico que J’onn resolve voltar pra Marte, atrás de respostas. Adivinhe quem o recepciona. Acertou quem disse H’ronmeer. Mas o ponto aqui é outro. No segundo recordatório, Ajax fala que sua vida pregressa na Terra era uma mentira. Ou seja, esqueça tudo que veio antes da Crise. Nada daquilo vale mais. Esqueça, mas não foi apagado, porque ele não tá renegando. Porra, até o Erdel aparece e tem um papel relevante na história. Ainda em Marte, a dupla passeia e chega até o local onde ficava a cidade em que J’onn morou. Aí tem aquela conversa mole de vozes do passado, veja como era, essas coisas meio oníricas. Era uma boa chance de espiarmos como era o planeta, mas os desenhos de Badger são ruins demais e a cidade mais parece um monte de cotoco comprido e esquisito.

Ah, ele também entende o medo do fogo: sua esposa morreu com a peste marciana e, como os demais, teve seu corpo purificado pelas chamas. Daí o trauma dele e o susto quando Batman derrotou os marcianos brancos com fósforos.

No Colorado, Sr. Milagre, Besouro, Gladiador e Batman interrogaram o falso doutor e ficam sabendo dos babados. O Morcego ameaça-o, perde a moral na frente dos amigos e o Milagre diz pra deixar quieto: Ajax tem que passar por isso. Finalmente J’onn entende, numa passagem bem humana: ele reencontra a mulher e a filha e ambas pedem: deixa a gente partir. H’ronmeer é o deus da morte marciano e foi atrás do último sobrevivente porque suas lembranças não estavam deixando sua família partir. Já visse um troço desse? As almas penadas marcianas só queriam ir pro céu, mas estavam presas nesse mundo. Quem pensaria nisso pra um gibi de super-heróis?

No frigir dos ovos, Erdel traz Ajax de volta quando o marciano assim solicita, sua família vai pro céu e Batman fica desmoralizado. E assim, Ajax, O Marciano é reintegrado ao Universo DC oficialmente e Marte continua ali do lado, bem pertinho do satélite da Liga, construído um tempo depois. Mas aqui parece o planeta mais longe do mundo.

E não poderia deixar de colocar aqui as últimas palavras do gibi: “”Dedicado com afeto e admiração ao homem que descobriu Marte: Ray Bradbury”. Chorei.

 

  

Roteiro: J. M. DeMatteis

Arte: Mark Badger

Editor: Andrew Helfer

Capa: Mark Badger

Publicação original: Martian Manhunter #1 a #4 (maio a agosto de 1988)

No Brasil: Liga da Justiça #18 a #21 (junho a setembro de 1990)

Nota dos editores:  4.0


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