Imagine que você nasceu num cu-do-mundo onde falta tudo, menos álcool, violência e autopiedade. Imagine que você tem peito para dar uma sonora banana a herança cultural, orgulho da raça e outras abstrações que, no fim do dia, não põem comida na sua mesa com a devida urgência, nem apontam um caminho qualquer pra um futuro melhor. Você se descobre forte o bastante para quebrar o círculo vicioso no qual todos aos seu redor estão presos, gastando sua juventude em paragens ligeiramente melhores, longe de todo aquele atraso e decadência.
Não que os quinze anos vividos longe da paupérrima reserva Rosa da Pradaria tenham transformado Dashiell Cavalo Ruim em um homem muito diferente do que ele seria, caso tivesse ficado: o lakota é um brigão contumaz, que vive revoltado contra tudo e contra todos. Não dê motivos para Dash brigar com você: ele sequer precisa de um.
Imagine, agora, que seu trabalho vai arrastar você de volta àquele cu-do-mundo, de onde, com tanto esforço, você saiu. Você ficaria muito puto, né?
O conturbado retorno de Cavalo Ruim ao cemitério moral de seu outrora guerreiro e orgulhoso povo, e as razões que ele tem para retornar, são o mote de Escalpo – Edição de Luxo, Livro 1. Escrita pelo americano Jason Aaron (Thor) e desenhado pelo sérvio R. M. Guéra (Batman Eterno), a série teve 60 edições, já havendo sido integralmente publicada no Brasil, na extinta revista Vertigo, da Panini Comics. Este Livro 1 compila as 11 primeiras edições. São cinco encadernados previstos; o segundo já se encontra à venda.
A edição da Panini traz alguns extras, como estudos de capas e o roteiro do primeiro capítulo. O formato é o das Edições Definitivas, ligeiramente maior que o formato americano padrão. Por mais vistoso que esteja, não há como não criticar o preço sugerido de R$ 120. Os quadrinhos atuais viraram um lazer proibitivo pra leitores com bolso raso. É preciso contar com a sorte de pegar um desconto generoso em lojas virtuais. Se, hoje, quase não precisamos mais temer a descontinuidade de uma coleção, o problema passou a ser conseguir pagar por ela até o fim.
Ao mesmo tempo em que denuncia o tratamento dedicado pelo governo americano aos povos indígenas – mortos aos milhares ao longo de séculos, catequizados à força, culturalmente descaracterizados e abandonados em pedaços miseráveis de terra sem perspectivas, entregues ao ócio e ao álcool – a história de Escalpo gira em torno de pessoas que lutam para mudar tal realidade. Uma delas é Lincoln Corvo Vermelho, ex-ativista político que preferiu o dinheiro fácil do jogo e do tráfico. Lincoln é o dono do poder na reserva e do Cassino Cavalo Louco, delirante empreendimento prestes a ser inaugurado num lugar cheio de pessoas sem qualquer fonte de renda (o que realmente vai rolar ali, claro, é lavagem de dinheiro).
As histórias de Cavalo Ruim e Corvo Vermelho estão intimamente ligadas, no passado e no presente – e não só as suas: num lugar tão pequeno, é até natural que as vidas de todos acabem se tocando. Existem décadas de segredos e mentiras unindo os remanescentes da reserva. A chegada de Dash é o estopim que faz explodir amores e ódios antigos, pondo em marcha tramas de vingança e reparação, nas quais conhecemos personagens coadjuvantes cheios de densidade emocional. No fim das contas, os habitantes de Rosa da Pradaria estão apenas tentando arcar com o peso de suas escolhas e tomar de volta as rédeas de seus próprios destinos.
A habilidade de Jason Aaron em criar situações verossímeis e diálogos marcantes está à toda em Escalpo, na qual é evidente seu trabalho de pesquisa sobre a cultura dos nativos americanos. Centrada em um universo essencialmente masculino, a trama é cheia de passagens memoráveis. A cada edição, temos um novo olhar sobre a vida de personagens aparentemente desimportantes, mas com os quais sentimos identificação imediata. Como todos nós, os habitantes da Rosa da Pradaria estão apenas tentando tomar as rédeas do próprio destino. Todos eles amam, odeiam, sofrem, sonham com dias melhores e cometem burradas terríveis. Se parece familiar, é porque é.
Nos desenhos, temos o traço de R. M. Guéra, transpondo a habitualmente formal atmosfera noir para um lugar onde tudo é feio e sujo. Em vez de escritórios e becos urbanos, temos negociatas em pleno deserto, sexo em trailers imundos e uma briga no meio de um rodeio, com ilustre participação do touro. A habilidade de Guéra em fazer da reserva um lugar desagradável é parte do que torna esta uma obra admirável, trabalho completado pelas expressivas capas do sempre competente Jock.
Politizada e contundente, Escalpo tornou-se, com méritos, um dos principais títulos da Vertigo neste século. É leitura para nervos fortes. As portas do Cassino Cavalo Louco estão abertas. Visitar a Rosa da Pradaria pode ser perigoso, mas as recompensas adiante fazem valer o risco. Será uma longa noite, senhores. Façam suas apostas!
Roteiro: Jason Aaron
Arte: R. M. Guéra
Editor: Will Dennis & Case Seijas
Capa: R. M. Guéra
Publicação original: janeiro a novembro de 2007
No Brasil: outubro de 2017
Nota dos editores: 4.5