1934: o ano que mudou as tiras

Pelas suas aulas de História, você fará duas associações ao longínquo ano de 1934: Getúlio Vargas é (re)eleito presidente de forma indireta e promulga uma nova Constituição; Adolf Hitler adota o título de “Führer” (condutor, chefe, em alemão) e dá início ao regime nazista na Alemanha. Fora isso, você pode listar algumas pequenas curiosidades pra falar em mesa de bar: Henry Miller publicou o “obsceno” Trópico de Câncer; Aurora Miranda e André Filho gravaram a marcha “Cidade Maravilhosa”, de olho no carnaval de 1935; nasceram, entre outros, Charles Manson, Rubén Aguirre e Carl Sagan.

Era um período de grandes mudanças no Brasil, no mundo, e em todas as esferas da sociedade, inclusive no nicho da “cultura pop”, duzentos anos antes desse termo surgir. Dali a quatro anos, Action Comics #1 chegaria às bancas e o resto nós sabemos. Essa indústria vital se veria de ponta a cabeça, quando a Grande Depressão começava a ficar no passado. Mas, em 1934, quando o New Deal ainda não havia resolvido tudo, o desemprego assolava os Estados Unidos de costa a costa, e o escapismo parecia mais necessário do que nunca.

Em 1931, três anos antes e no auge da Depressão, Hal Foster cedeu à pressão dos editores (após pedido do próprio Edgar Rice Burroughs, que o queria de volta à prancheta de sua criação) e, com o dinheiro cada vez mais minguado, resolveu voltar às tiras do Tarzan, de onde tinha saído uns anos antes por divergências editoriais e criativas (leia-se: considerava que aquilo não era um trabalho para um artista como ele [era coisa de desenhista, perceba a pequena diferença]. Sim, aquele seu amigo da escola não é o único que acha gibis uma bobagem). Nesse meio tempo, atuou onde o grosso dos desenhistas trabalha quando não estão no mercado de quadrinhos: nas agências de publicidade. A agência em que Foster trabalhava já estava pra quebrar e, por isso (entre outros motivos), ele voltou ao personagem que o fez surgir para esse nosso mundo. Estava de volta às famosas páginas dominicais do Rei das Selvas.

Hal Foster começou a mudar de opinião quando as cartas dos fãs começaram a chegar. A galera simplesmente ficou enlouquecida com aqueles desenhos e isso foi deixando-o cada vez mais empolgado. Aí, o bicho se soltou! Foster começou a experimentar estilos, deixando a arte cada vez mais realista; foi dos primeiros a testar o chiaroscuro, entre outras “loucuras”. A melhor delas: fez com que Tarzan se tornasse um épico imenso, bem à moda dos filmes daquela época. As histórias duravam meses, algumas mais do que um ano! E você aí reclamando de arco de doze partes do Jeph Loeb com o Jim Lee!

Qual o primeiro e mais óbvio resultado disso? O patamar mudou drasticamente. O público não ia se contentar apenas com aquela tira marota e engraçadinha. Eles queriam mais. Queriam histórias grandiosas e desenhos cada vez mais caprichados. Hal Foster abria terreno pra sua criação máxima: Príncipe Valente seria publicado pela primeira vez em 1937, um ano antes do Superman; percebe a concorrência da época? Mas não só isso: Foster deixou um rastro que seus contemporâneos exploraram ao máximo. O nível estava elevadíssimo.

Diante disso, enquanto os Estados Unidos iniciavam sua recuperação econômica para sair da maior crise do capitalismo no século XX, alguns autores produziram tiras que, de tão clássicas, ainda hoje são republicadas, lidas, comentadas e influenciam um sem-número de novos autores. O maior deles (na minha opinião) criou, somente em 1934, nada menos que três dos maiores personagens dessa indústria vital.

Alex Raymond era apenas um desenhista assistente na virada dos anos 1920 para 1930. Muito jovem, no auge dos seus 25 anos, em apenas um mês, causou um “estrago” que reverbera até hoje: em janeiro de 1934 eram publicados Flash Gordon, Jim das Selvas e Agente Secreto X-9. Se houvesse internet e Facebook naquela época, leríamos textos enormes problematizando suas criações: vários desmascaradores afirmando que os dois primeiros não passavam de uma imitação barata de dois grandes sucessos do momento, Buck Rogers e o citado Tarzan (por coincidência, Agente Secreto foi criado em conjunto com o escritor Dashiell Hammett, que você deve conhecer por causa de seu romance mais afamado, O Falcão Maltês).

Polêmicas a parte, Raymond explorou o gênero aventura por caminhos bem variados, fazendo escola com seu traço lindo (novamente, na minha opinião) e épicos grandiosos. A garotada pirava nessas histórias que se passavam numa realidade distinta e bem distante daquele mundo em recuperação. A esperança voltara e, com ela, as boas histórias.

Se aquele momento pedia escapismo, nada melhor do que mágica para distrair um cidadão aflito em busca de emprego, não é mesmo? Aliás, shows de mágica itinerantes eram bem comuns nos Estados Unidos entre o fim do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. Até hoje, grandes mágicos se apresentam para plateias imensas nos cassinos de Las Vegas. Quem, diabo, não gosta de um bom show de mágica? Talvez pensando nisso, Lee Falk tenha criado a tira do Mandrake, o Mágico.

Mais um oriundo de agências de publicidade (já assistiu Mad Men? A trama se passa vinte anos depois dos eventos aqui citados, mas lá os desenhistas podem ser vistos trabalhando), onde escrevia e não desenhava, Falk igualmente escreveu e produziu programas de rádio antes de enveredar pelos quadrinhos. Juntamente com o desenhista Phil Davis, mandaram seu trabalho para os jornais e, em pouco tempo, Mandrake era publicado em cores, aos domingos. Ou seja, um sucesso. Não por menos, a tira é publicada até os dias de hoje.

A última grande tira entre as citadas a ganhar os jornais em 1934 talvez seja a menos conhecida por aqui. Vendo o sucesso estrondoso dos personagens acima (e muitos outros), o Chicago Tribune solicitou a um desconhecido Milton Caniff uma história que batesse de frente com as coqueluches do momento e deixasse os jovens malucos. Formado em Belas Artes e tendo atuado no teatro, Caniff já trabalhava com quadrinhos (o jornal não ia dar uma tarefa dessa magnitude a um novato; ele era desconhecido, não inexperiente).

O primeiro grande desafio de Caniff era de ordem geográfica: os lugares mais inóspitos do planeta, aquela altura, já estavam povoados pelos heróis. Até o espaço sideral andava congestionado. No entanto, os personagens firmaram-se em terra firme ou conquistaram os céus. Os mares, por incrível que pareça, estavam abandonados. Para não ficar de fora da moda, procurou um local que suscitava a curiosidade de seu público-alvo: a China (convenhamos, isso durou até pouco tempo). Assim, nascia Terry e os Piratas. Em menos de dois meses, uma série paralela era publicada nas páginas dominicais. Sucesso instantâneo. Uma pena que nunca teve reconhecimento do público e das editoras brasileiras. Só pra ficar entre os mais óbvios, Caniff foi influência direta pra gente como Joe Shuster, Bob Kane, Jack Kirby, John Romita, Will Eisner e até Hugo Pratt.

Volta e meia, essa material clássico é publicado por aqui das formas mais variadas possíveis e nas mais diferentes editoras. A tentativa mais recente (e mais ambiciosa) é essa da Pixel. Eles lançaram aqui um primeiro volume das tiras dominicais de Flash Gordon e, tempo depois, do Príncipe Valente. A Devir lançou, num formato semelhante, Agente Secreto X-9. Mas, a julgar pela demora na continuação, não deve ter vendido muita coisa – ou então, é uma estratégia de mercado deles, vai saber. É um material lindo, com desenhos que te deixarão de boca aberta. Talvez a leitura dê aquela truncada no começo (alguns, nem balões têm, como você pode observar nas imagens desse post), mas vale o esforço: são histórias que te farão não largar esses álbuns, enquanto não chegar à última página.

 

  iTunes   Fale com a gente!

Deixe uma resposta