Sobre super-soldados e super-heróis

Espartano, centurião, cavaleiro… O soldado. Independente do século ou civilização, a figura do combatente armado, integrante de um exército, enfrentando o inimigo em defesa de seu povo, sua pátria e seus ideais, alcançou lugar de destaque no imaginário popular. A realidade cruel dos combates tornou-se empolgante na tradição oral, literatura, ilustrações, gibis e, por fim, nas telas de TV ou cinema.

Por muito tempo, crianças e jovens tinham o soldado como ídolo. Brincavam com armas de madeira, plástico ou qualquer outra coisa que simulasse revólveres ou metralhadoras. A cultura de massa sempre esteve em um ponto central desse assunto, oferecendo ilusões e fantasias ao público, enquanto colhia impressões, acompanhava tendências sociais.

Embora guerreiros como os espartanos ou os legionários romanos tenham sido os mais famosos da antiguidade, povoando a imaginação de gerações através dos séculos, foram seus herdeiros morais que ocuparam espaço realmente influente em termos culturais. Os cavaleiros se tornaram figuras icônicas em tempos conturbados. Os mais famosos e duradouros são justamente aqueles que caminham, até hoje, em uma verdadeira zona do crepúsculo entre real e imaginário.

São Jorge e os Cavaleiros da Távola Redonda se destacaram em meio a um fenômeno cultural da Idade Média, o dos romances de cavalaria. O ideal do mais forte defendendo o indefeso, enfrentando a maldade humana ou sobrenatural, dedicando a vida aos outros. Os registros históricos ora descrevem essa época como a Idade das Trevas, ora como um tempo em que a civilização europeia estava se reestruturando lentamente. Seja qual for a verdade, o fato é que o arquétipo do protetor dos mais fracos era necessário, tanto no mundo material quanto na mente humana.

Como o passar dos séculos, duas constantes se mantiveram no jogo de poder de impérios e sociedades: a violência da guerra e a necessidade de combatentes. Uma verdade trágica, alimentada por quem está no comando das nações. E, gradualmente, surgiu o soldado como o conhecemos.

O século XX, com suas duas grandes guerras, consolidou de vez a presença desses combatentes no panorama cultural, ainda mais com as inovações nas áreas audiovisuais. Mais do que fazer parte de relatos e textos, eles passaram a ser vistos em fotos e, mais à frente, em filmes. Claro, a propaganda militar trabalhou pesadamente nesse sentido. A cultura norte-americana, em especial, soube como nenhuma outra potencializar essa tática. Seus soldados eram bravos, sem causar medo. Valentes, sem serem agressivos. Todos torciam por eles e muitos queriam ser eles. Crianças e jovens, principalmente.

Nas primeiras décadas do século XX, os livros pulp e as histórias em quadrinhos eram protagonizados por todo tipo de herói. Aventureiros espaciais e das selvas, vigilantes urbanos, detetives, mágicos… E logo surgiu o próximo passo na evolução criativa: o super-herói.

A princípio, havia uma correlação entre os soldados e os super-heróis. Tempos mais simples, como dizem em tom indulgente – o que se torna compreensível, dada a situação.

Os inimigos em questão “ajudavam”. Nazistas e fascistas forneciam munição para a propaganda doa aliados e foi questão de meses para que Superman e muitos outros supers passassem a apoiar os esforços de guerra. E entre um ou outro super-herói mais patriótico, militar, surgiu o mais perfeito e duradouro exemplo de fusão entre o herói combatente e o novo modelo de heroísmo…

O Capitão América tinha todos os elementos dos dois tipos de herói. Um jovem altruísta, servindo a um dos exércitos mais poderosos do mundo, vestindo as cores de sua nação, incorporando ideais, inspirando nos outros esses mesmos ideais. Claro que a ingenuidade do personagem Steve Rogers torna-se dolorosamente lamentável se pensarmos que, no mundo real, inúmeros jovens pensavam da mesma forma em várias nações, nos dois lados do conflito, apenas para se tornarem bucha de canhão para os senhores da guerra. Uma verdade que era omitida na maioria das histórias. Enquanto isso, nos gibis e outras mídias, o Capitão América continuava a fundir quase perfeitamente, as figuras do soldado e do super-herói.

Muitos outros personagens surgiram no seu rastro, os anos se passaram e, com o final da Segunda Guerra Mundial, o tema foi perdendo força gradualmente. Não as histórias de guerra, que fique claro: os super-heróis militares e, tempos depois, os próprios super-heróis. Os que resistiram, foram se tornando cada vez mais voltados para o público infantil, ou pelo menos, a ideia que editores tinham de público infanto-juvenil.

Superman foi se tornando cômico, fantasioso, surreal, cada vez mais “inofensivo”, se comparado aos tempos em que espancava maridos violentos, denunciava corruptos e se envolvia com temas próximos do mundo real. A mesma coisa com os poucos outros a conseguir manter as publicações. Efeitos da cruzada do Dr. Wertham, da América paranoica dos anos 1950. O Capitão América passou a combater espiões comunistas, até sumir no temido limbo dos gibis.

Talvez tenha sido nesse ponto que surgiu a lenta separação entre os dois tipos de ídolos… Soldado e super-herói. Afinal, a sociedade queria exemplos de comportamento infantil e não os que remetiam aos assuntos complicados de vida e morte. Os gibis de guerra, por outro lado, tiveram um período de destaque.

Não tinham super-pessoas nem uniformes coloridos. Apenas estereótipos acessíveis para os jovens. Sargento Rock, Falcões Negros, Tanque Mal Assombrado, Os Perdedores, Força-Tarefa X e muitos outros alcançaram relativo sucesso.

Passaram-se mais alguns anos e com o ressurgimento dos super-heróis no final dos anos 1950, começava o processo inverso. Personagens coloridos e super-poderosos ganhavam novamente destaque, enquanto os soldados perdiam pouco a pouco sua audiência. O Capitão América ressurgiu, com um dos primeiros retcons dos gibis, explicando que pouco antes do final da Guerra, uma explosão o jogara em um estado de hibernação nas águas geladas do oceano, desconsiderando as histórias pós-1945 e os confrontos contra comunistas. Essa versão seria revelada, muito tempo depois, como um fã obcecado, que assumiu o uniforme, após uma sucessão de substitutos que mantiveram o legado do Sentinela da Liberdade vivo. Complicado? Vamos deixar quieto. Isso fica pra outro papo.

De toda forma, o Capitão original voltou diferente. Mais super-heroico e menos militar. Havia um prenúncio de mudanças por vir… Os militares começavam a se tornar coadjuvantes pouco eficientes nas histórias dos super-heróis, que sempre salvavam o dia, enquanto os soldados eram imobilizados, lançados no ar, congelados ou mesmo enxotados pelos vilões e ameaças. Em outros casos, eram eles, os militares, os causadores de problemas. O maior exemplo, o Incrível Hulk. Produto da corrida armamentista, tornou-se alvo do exército ao mesmo tempo que era cobiçado por seu potencial bélico.

No final dos anos 1960, outra revolução social influenciou os quadrinhos. A reverência e idolatria aos soldados do mundo real foi substituída pelo questionamento, pela aversão ao envio de cidadãos aos campos de batalha. Uma parcela cada vez maior da população discordava não apenas disso, como também do próprio sentido das guerras. Os tempos mudavam. Cumprir ordens cegamente, obedecer os poderes constituídos, tornou-se algo contestado.

Os super-soldados começavam a optar pelo super e descartar o soldado.

Um exemplo foi o Capitão Mar-Vell, um clichê bem ao gosto da civilização ocidental. Enviado pelos governantes de seu povo, os Krees, para espionar e posteriormente usar esses conhecimentos contra “nós”, ele opta por defender seus até então inimigos, um tema recorrente na ficção científica da época, uma analogia sobre como os comunistas, em tese, mudariam de lado se vivenciassem o “mundo livre”.

Tempos depois, Jim Starlin iria mais além e transformaria Mar-Vell em um exemplo visceral do soldado que abandona o caminho militar por uma trilha mais pacifista. Desenvolvendo, inclusive, uma consciência cósmica. Mais Era de Aquário impossível.

O gibi do Homem-Aranha se tornou palco de críticas constantes ao conflito do Vietnã, quando Flash Thompson se alistou. Os personagens se dividiam entre os que o apoiavam e os que eram contra.

Anos 1960 e 70 passados, a separação foi quase total. Os gibis de guerra sumiram, os de super-heróis ocuparam todos os espaços. Nos anos 1980, excetuando os G.I. Joe, nos gibis e desenhos animados, a contestação alcançou refinamento e críticas contundentes nas maiores obras da década. Demolidor enfrentou Bazuca, enquanto um deslocado Capitão América se via em dúvida sobre seu papel como símbolo de uma nação, em A Queda de Murdock.

Superman, ao invés de defensor do American way of life, foi mostrado como capacho do governo norte-americano em Batman: O Cavaleiro das Trevas. Na versão pós-Crise nas Infinitas Terras, o Capitão Átomo foi traído por um superior nas Forças Armadas e depois de ganhar seus poderes em um teste ilegal feito pelos militares, passou a ser um fantoche, até se rebelar completamente. Cada vez mais, os soldados e seus comandantes, estavam em campos opostos aos dos super-heróis.

Militarizar os super-seres era sempre uma trama onde as forças armadas eram o manipulador maquiavélico.

E seguiu assim até os anos 2000…

Em um dos maiores e inesperados sucessos da Marvel Comics, um remake em tom pseudo-realista dos Vingadores conseguiu ir na contramão. Mark Millar e Brian Hitch militarizaram toda a concepção da equipe formada por Nick Fury, Thor, Homem de FerroVespa, Homem Formiga, Capitão América e Hulk. Surgia a série The Ultimates, tão devastadora nas vendas quanto nas ações do grupo. Ao invés de super-heróis altruístas, tínhamos super-soldados com as moderadas falhas de caráter criadas por Stan Lee elevadas à estratosfera. Não que os Vingadores “tradicionais” fossem desprovidos de soldados. Além do Capitão América, a equipe tem a capitã Carol Danvers, James Rhodes, Bucky Barnes e outros que já serviram nas Forças Armadas. Só que, pela primeira vez, vimos um Capitão América agindo como soldado, no sentido mais seco da palavra. Brutal, eficiente, arrogante, sem apologias.

Curioso observar que, poucos anos antes, o ex-mentor e atual desafeto de Millar, Grant Morrison, tinha feito um arco na revista LJA no qual os heróis enfrentava uma versão militar de personagens Marvel, os UltraMarines. Millar, ao invés de desmascarar o complexo militar, abraçou o conceito e, mesmo mostrando suas falhas, admitiu a necessidade de sua existência, como poderia funcionar mesclando-se ao conceito dos supers e, no processo, sendo um sucesso de crítica e vendas. Morrison reforçaria sua opinião contrária à militarização de personagens que considera essencialmente pacifistas e exemplos para as novas gerações, tanto em seus trabalhos quanto em entrevistas.

Millar faria ainda outra fusão de personagens clássicos com as forças armadas, na origem do Quarteto Fantástico Ultimate (mais uma vez, com fortes semelhanças com a origem dos UltraMarines), com relativo sucesso, ainda que inferior ao de The Ultimates.

Na DC, Geoff Johns introduziu um militar com super-poderes na Sociedade da Justiça da América, descendente direto do presidente Franklin Delano Roosevelt, que nos quadrinhos foi o responsável por sugerir aos heróis a criação da equipe. David Reid faria parte de um crescente número de super-seres atuando no exército norte-americano, um conceito esquecido nos anos seguintes.

Nos cinemas, nessa onda de adaptações dos últimos 15 anos, os militares se resumem a perseguir o Hulk, invadir a Mansão X, escoltar Superman e entregá-lo ao General Zod. Ah, sim, e perder o Capitão América para os Vingadores e/ou a SHIELD.

No mundo real, as crianças não brincam mais como soldados, convenhamos, com bons motivos. O que há quase 80 anos parecia a fusão icônica perfeita, soldado e super-herói, mostrou-se incompatível, salvo raríssimas exceções. Soldados continuam suas lutas, quase sempre inglórias. Super-heróis continuam avançando em suas fantasias e guerras fantasiosas. O conceito de herói muda com a humanidade…


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