A Maldita Máscara

É difícil ler uma história convencional de Will Eisner com o Spirit e ser convencido que Denny Colt é um super-herói. Provavelmente, o gênio pioneiro do seu criador tomaria isso como elogio; e, quem sabe, ficasse corado se me visse dizendo por aí que, na dúvida ou na crise criativa, o caminho que os autores têm que buscar numa correção de curso ainda é o constante naquelas páginas de [quase] 80 anos atrás.

Não sou tão saudosista quanto transpareço, na verdade, já fiz bons inimigos na vida por rechaça-los na hora da falácia “bom era nos velhos tempos”. Quem fala isso, lamento, mas parou no tempo. O quadrinho moderno permite mais ousadia, experimentações e até escapa ao mero mimetismo cinematográfico¹ tão costumeiro nessa indústria; claro, desde os primórdios, a narrativa gráfica/arte sequencial sempre foi dada a infringir regras, a diferença hoje – assim penso – é que o quadrinhista contemporâneo cria com a convicção de que não existe regra alguma. E quer saber? Eles estão certíssimos.

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A história predileta de Jô Soares é a do conto de Gerhard Shnobble. A minha também!

Os precursores tinham que lidar com bastante porcaria, questões de autoestima, depreciação do ofício vinda de terceiros, impasses que punham em xeque a dignidade do próprio ofício; e é bem verdade que esses temas ainda despertam entrechoques existenciais entre os autores, sobretudo nas redes sociais, contudo, ninguém pode negar que exista hoje uma liberdade e valorização da carreira que antes não existia. Lendo a biografia de Will Eisner, Um sonhador nos quadrinhos, de Michael Shumacher, tu acabas tendo a exata noção de que a vida inteira dele foi em cima de um ringue, arbitrando ânimos e interesses entre correligionários de profissão e financiadores das operações.

Uma luta que, em vida, talvez ele nunca tenha de fato conhecido o vencedor, embora sua contribuição para a indústria como primeiro bastião do direito autoral seja a pedra de toque na proteção dos criativos perante conglomerados do entretenimento. Por outro lado, enquanto leitor, o que o legado Eisner suscita dentro de mim é essa atitude de imaginar um quadrinho de super-herói – ou qualquer outro – como uma oportunidade mais comercial de contar histórias pequenas no manto dissuasivo de uma máscara:

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Quer dizer, o Spirit era/é, na falta de expressão melhor, um boi de piranha. Um catalisador de tramas menores que, provavelmente, seriam maiores caso fossem trabalhadas com o foco narrativo exclusivo no Spirit. A falta dessa especificidade Eisneriana na produção atual, em minha opinião, é o grande problema de boa parte do que chega às bancas: tramas egocêntricas, que focam demasiadamente no protagonismo, nas necessidades do dono da revista.

Perdoem-me os fãs desse estilo e do autor – sou um deles, mas pelas razões certas –, mas caso o modus operandi campeão de Tom King vire a tônica² desse restinho de década, o Batman vulnerável dele pode se tornar o oposto completo da [minha] idealização do personagem: alguém que demonstra humanidade nos seus silêncios, dentro de atos concretos em que o próprio não sabe como externá-los verbalmente, demonstrando que sua falta de tato humano não o torna menos humano.

O olhar de Tom King é o completo oposto do que estimo no Batman e isso não quer dizer que eu esteja descredenciando todos os feitos do autor nos últimos 50 números de sua elogiada fase; pelo contrário, gosto de me sentir desafiado, de ver o que não gosto de ver e, de vez em quando, me flagrar dando o braço a torcer – mais ou menos aquela história que conversamos noutro dia.

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Para encerrar o texto, meu quadrinho campeão é assim:

Trata-se de história publicada em The Spirit of Eisner Newspaper, uma antologia de 12 páginas organizada por Sean Phillips publicada ano passado [2017], que celebrava o centenário de nascimento de Will Eisner, replicando o estilo de publicação – folha larga – do seu suplemento de quadrinhos em jornais estadunidenses entre 1940 e 1952. A tradução e letreiração é de minha autoria mesmo.

Note que a participação de Spirit é mínima, dá espaço para o barman e Marvin confabularem e, no final, a intervenção do herói demonstra uma faceta humana despretensiosa, sutil, que faz toda a diferença para a história e o protagonista.

Quadrinhos assim são raros.

¹ Há um movimento inverso em curso: os quadrinhos influenciam o cinema. ² Os autores de Batman tendem a ser impressionáveis. Frank Miller ditou moda, Grant Morrison idem. Aí – reitero! – não se surpreenda se a herança deixada por Tom King seja a de um Batman que espelhe seu estilo.

 

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