Desembolando o Gavião Negro

O que torna um personagem ou conceito complicado? Por que, em alguns casos, os mesmos fatores que complicam uns, não são vistos da mesma forma com outros? Em quase um século de histórias de super-heróis, alguns deles adquiriram a medonha fama de ser tão complicados que é melhor nem tentar ler suas histórias. Por isso vamos discutir alguns dos mais notórios nessa questão, começando por um dos que praticamente representa o fato e, ao final, tentaremos responder a pergunta: o personagem Hawkman é tão complicado quanto dizem?

Um homem com asas, que caça criminosos. Não tem complicação, é um conceito simples e direto, visualmente perfeito para o entendimento de qualquer idade e que captura a imaginação de adultos que nunca abandonaram sua criança interior. Difícil é compreender como alguém pode complicar algo assim, mas o editorial e alguns roteiristas se esforçaram pra bagunçar as coisas… Com o devido respeito e admiração aos primeiro escritores do quadrinhos, precisamos reconhecer que muitas vezes os caras produziam presepadas constrangedoras. Muitos pegavam ideias criativas, juntavam referências e inspiração respeitáveis, aí desenvolviam pequenas pérolas da ficção. Outros vinham e jogavam no mundo o Hawkman. Não leve a mal, caro leitor. Se você tem a Era de Ouro em alta estima, saiba que toda sua importância não impede que sejamos justos. Por mais que Carter Hall e sua identidade alada sejam legais em muitos aspectos, sua história de origem não é um deles. É malajambrada até dizer chega. E já começou complicando o que seria bem simples.

A proposta de Gardner Fox e Dennis Neville era ter um herói com visual icônico, autoexplicativo, imponente e que apelava para um dos sonhos mais antigos da humanidade: voar igual aos pássaros. E não qualquer passarinho ou demais aves cobertas de penas. Gardner escolheu um dos mais conhecidos. Entre as aves de rapina, as águias, falcões e gaviões sempre chamaram a atenção por sua elegância, agressividade e capacidade de impor respeito. Seja nos brasões, emblemas, nas artes ou na própria observação na natureza. E seguindo a lógica maniqueísta dos quadrinhos nos anos 1940, se o herói seria um gavião, suas presas seriam os criminosos. Ok, está tudo bem, vamos lançar o personagem. Aí vem a grande armadilha da qual o herói nunca conseguiu escapar…

PARA QUÊ SABER MEU NOME, SABER DO MEU PASSADO?

O senhor Fox cometeu um erro que outros evitaram. Sim, era quase obrigação contar a origem de um novo herói. Explicar como se tornou um mascarado misterioso ou como adquiriu seus poderes. Mas raramente essa origem era parte da trama dali por diante. Clark Kent tinha poderes por ter vindo de outro planeta, Jay Garrick tinha supervelocidade por causa de um acidente em laboratório e por aí vai. Mas nenhum deles lidava com essas origens em suas aventuras. Não que isso fosse um problema em si. O que complicou no caso do Gavião Negro foi que a origem tentou explicar os poderes e para isso acabou se tornando uma misturada indigesta, o que por sua vez tornou sua estreia uma doidice desnecessária. Carter Hall é mostrado como um rico pesquisador que, ao receber uma relíquia vinda do Egito, cai no sono e relembra de uma vida passada, na qual era um príncipe chamado Khu Fu, vítima das armações de um sacerdote, Hath Set, que matou o príncipe e sua princesa, Shiera. Carter acorda, sai para dar um passeio e tentar entender o que sonhou, mas esbarra em uma ocorrência misteriosa, quando passageiros de um vagão de metrô morrem carbonizados. Fugindo do local, uma jovem acaba indo parar nos braços de Carter, que a reconhece como sendo Shiera reencarnada. Ele a deixa tirando uma soneca em seu apartamento, vai pra um laboratório e sai de lá vestindo o traje de Hawkman, sabendo onde deve ir para encontrar o causador da tragédia do metrô, um cientista mauzão chamado Hastor, que na verdade é Hath Set reencarnado. Ao final da história, Carter mata Hastor.

Sim, a história é medonha. Só que pior ainda é a tentativa de usar elementos que atiçavam com toda força a imaginação de escritores e leitores. Egito Antigo, misticismo como ciência, hipnose, reencarnação. Temas que renderam incontáveis histórias nos pulps, no cinema e nos quadrinhos. Mas que, nesse gibi especificamente, foram pessimamente desenvolvidos.

Para começar, o devaneio de Carter é uma pataquada. Ele é um príncipe egípcio loiro, Hath Set e seus capangas usam turbantes, o próprio deus egípcio com cabeça de falcão que teria o paralelo visual com o traje do Hawkman é chamado de Anúbis, quando deveria ser Hórus, ou seja, uma bagunça generalizada. Nisso vem a série de situações ridiculamente coincidentes, personagens se esbarrando ou confrontando do nada, o surgimento da identidade heroica e o uso do traje sem relação direta com as revelações das vidas passadas. Afinal, quando sai do laboratório caracterizado como Hawkman, é dito que ele havia descoberto um metal misterioso que podia interferir com a gravidade, ou seja, o sonho não serviu pra nada além de complicar mesmo.

Enfim. Os leitores foram apresentados a um dos visuais mais legais dos gibis, o homem de rapina, mas acabaram sendo pegos em uma tradição maldita, de tornar complicado o que podia ser simples.

Algumas décadas se passaram, Carter Hall sumiu das publicações junto com a maioria dos super-heróis durante boa parte dos anos 1950, mas o conceito visual do Hawkman não saiu da memória dos leitores e dos roteiristas. A maior prova disso foi que em 1961 retornou em grande estilo, em meio ao resgate maciço de personagens feito pela DC Comics. E no caso do guerreiro alado, um diferencial, ou melhor, uma não-diferença. Entre as novas versões de heróis que tinham sido da Era de Ouro, ele manteve um visual praticamente idêntico. Lanterna Verde, Flash, Átomo e Tornado Vermelho, por exemplo, além de novas identidades e origens, ganharam visuais diferentes. E embora essa versão sessentista tivesse outro nome civil e outra origem, o traje teve mudanças sutis, apenas.

Em sua nova versão, Hawkman foi apresentado como Katar Hol, um policial do planeta Thanagar, uma sociedade essencialmente fascista, onde um estado policial vigorava. Perseguindo um criminoso chamado Byth, Katar e sua esposa, a policial Shayera, vieram parar na Terra, onde se disfarçaram como terráqueos enquanto caçavam o bandido. Eventualmente, depois de capturar seu alvo, decidiram ficar na Terra para uma espécie de intercâmbio. O grande trunfo dessa versão foi simplificar. Mesmo usando a ficção científica, raças alienígenas e tudo mais, foi possível justificar tudo de forma coerente. Só que algum tempo depois resolveram trazer de volta o outro Hawkman, o da origem egípcia. Pra isso, recorreram à explicação das terras paralelas, usando o conceito de multiverso. Cada um no seu universo, o das antigas com a Sociedade da Justiça e o segundo na Liga da Justiça. Ok, não era tão complicado de entender. Mas algumas décadas depois, esse seria o fio que desfaria e embolaria completamente o novelo.

Antes de chegarmos lá, uma pequena pausa para falarmos de outro tipo de complicação na sofrida vida do personagem. Dessa vez, no Brasil. Por qual motivo o povo decidiu complicar o que era tão simples? Hawkman. Homem-Gavião. Vejam, podiam ter mantido o original, afinal, Batman está aí até hoje. Ou traduzido ao pé da letra, tipo Mulher-Maravilha. Mas não. Tinham de inventar moda e jogar um inexplicável Gavião Negro. Olha, além de não ter nada no uniforme ou no visual pra justificar uso de cor, ainda conflitou com o nome de outro herói, Blackhawk, o piloto líder de uma esquadrilha com o mesmo nome. Esse, sim, Gavião Preto ou Negro no original. Para ficar ainda mais incoerente, tanto Shiera quanto Shayera receberam traduções adequadas: Moça-Gavião e Mulher-Gavião. Para que mexer no nome do sujeito? E como bagunça pouca é bobagem, teve OUTRO desmantelo.

O desenho animado que adaptou a Liga da Justiça para a TV nos anos 70 trouxe o casal de Thanagar para a telinha, popularizando os dois com outra audiência. Tudo muito legal, só que, mais uma vez os tradutores brasileiros fizeram graça. Quando a abertura do desenho anunciava os nomes dos integrantes da Liga, ou melhor, dos Superamigos, como o desenho era chamado, Katar e Shayera recebiam os nomes de… HOMEM-ÁGUIA E MULHER-ÁGUIA. Alguém me explica como é que decidiram que águia era mais fácil de assimilar no Brasil que gavião, sendo que o segundo é um animal nativo e encontrado por toda parte, enquanto o primeiro é mais associado aos EUA? Enfim. Vamos logo pra complicação-mor: a Crise nas Infinitas Terras. Acabou o Multiverso. Agora só tinha uma terra e não dava para ficar batendo cabeça pelas paredes pra achar um jeito de conciliar todas as versões de personagens. Então pega um bocado deles e joga lá pra Baixa-da-Égua, no caso, pegaram a SJA e despacharam pra uma dimensão mística e pararam de falar neles. Pronto, resolvido, deixa o Katar e a Shayera, Thanagar e os policiais do espaço. Mas a bagunça tava só começando…

Entre 1987 e 1990, mais ou menos, a ordem era atualizar origens. Modernizar. Humanizar. Vamos falar a verdade, era tentar marvelizar a DC. Portanto, o negócio era reduzir poderes e inventar defeitos e culpas para os heróis. Superman deixou de empurrar planetas e passou a levar lapada até de fio de alta tensão. Hal Jordan foi pego na Lei Seca. E Katar Hol foi reapresentado como um elitista arrogante que acaba chapadão numa ilha e mata um sujeito para roubar o par de asas que o coitado estava fazendo pra ele, Katar. Fundo do poço total. Mas a minissérie, Hawkworld (ouça o 7 Jagunços sobre), e a mensal que nasce dela, são muito boas. Tim Truman e John Ostrander mandaram muito bem. Porém…

POR MIM EU ME GARANTO, O QUE COMPLICA É O MEU STAFF (EDITORIAL)…

O editor responsável pelo Gavião Negro achou por bem mudar um pequeno detalhe nessa nova versão do personagem. Um detalhe que os roteiristas não haviam nem cogitado mexer. Não tinha para quê, era a pior coisa a se fazer, complicar o que era simples. Mas não, tinha que vir alguém para estragar tudo. Agora, Katar Hol e Shayera viriam para Terra muito depois do que havia sido estabelecido. Ao invés de chegar no planeta pouco antes da formação da Liga da Justiça da América, eles teriam chegado depois da saga Invasão! e isso não é pouca coisa.

Como explicar a participação dos dois na Liga, o uso dos tubos de teleporte no satélite da equipe (tecnologia thanagariana), a amizade com Adam Strange, o período curto porém recente à época no qual integraram a Liga da Justiça Internacional, além de terem enfrentado a Aliança Alienígena da qual Thanagar fez parte, em defesa da Terra?

Jogaram o abacaxi pra John Ostrander descascar e o cidadão fez o melhor que pode. No caso da primeira Liga, estabeleceu que Carter e Shiera, heróis da SJA, teriam sido os gaviões dessa época, servindo inclusive de elos de ligação entre as duas equipes. Quanto à LJI, inventou dois novos personagens e uma história off panel. O Gavião Negro que encontrou o Superman de John Byrne, o Homem Animal de Grant Morrison e a Liga de Keith Giffen e J. M. DeMatteis seria Fel Andar, um espião thanagariano preparando terreno pra Aliança Alienígena, se dizendo filho de Carter e Shiera para ganhar a confiança dos heróis da Terra. A Mulher-Gavião nem lembro mais quem era e nem vou googlear sobre isso pois aí já é querer demais, pelamor. Só sei que tudo foi descoberto por J’onn J’onzz e Amanda Waller, mas já era tarde pra essa Mulher-Gavião falsiane, coitada, que acaba sendo morta pelo tal Fel Andar. E, pior ainda, tarde demais pra evitar a fama de personagem mais complicado em uma editora onde temos Donna Troy e isso não é pouca coisa, como vocês verão no próximo artigo do Arte-Final, sobre personagens complicados. Jabá Mode Off. Daí em diante, Ostrander teve de fazer mágica.

Criou uma trama onde explicou que o pai de Katar, o cientista e espião Paran, esteve na Terra pouco antes da Segunda Guerra Mundial, quando conheceu Carter e Shiera, ajudando o sujeito a desenvolver o metal enésimo, o que permitiu o surgimento de Hawkman e Hawkgirl, ao mesmo tempo em que se inspirou a criar a força policial alada de Thanagar, que eventualmente faria de Katar e Shayera os novos Hawkman e Hawkwoman no futuro.

Sim, complicado de explicar, mas a história ficou boa de se ler.

Passaram-se alguns anos as vendas caíram e resolveram apelar. Carter e Shiera voltaram durante a saga Armaggedon: Inferno. Aconteceu Zero Hora. Katar, Carter e Shiera enfrentaram uma entidade chamada Hawk-God. Os quatro acabam se mesclando em uma entidade composta. Agora as asas apareciam e desapareciam, tornando-se parte do corpo desse Hawkman. Ele passa a um uniforme preto e com elemento visuais nativo-americanos, o que gerou aqui no Brasil a célebre explicação numa seção de cartas da Editora Abril, de que esse visual justificaria mais do que nunca o nome adaptado pra Gavião Negro, e eu me dane se essa anedota já não for justificativa suficiente para estar redigindo isso tudo quase duas horas da madruga. Mas bora pra frente. Esse rolo todo não adiantou, as vendas continuaram caindo e resolveram matar o Gavião. Pelo menos o coitado teve sossego uns tempos.

Eis que James Robinson, David Goyer e Geoff Johns reviveram com sucesso a SJA. Criaram uma nova Moça-Gavião, Kendra Saunders, que na verdade era uma reencarnação de Shiera, sem as memórias da vida anterior. E lá pela edição 18 da mensal começaram a preparar terreno pro retorno do Gavião. Dessa vez a complicação foi bem feitinha. Juntaram tudo e costuraram com capricho. Tanto é que o apelido de costureiro acabou pegando no Johns.

Ficou estabelecido que uma nave thanagariana caiu no Egito Antigo e esse contato imediato concedeu ao príncipe Khu Fu e à princesa Chay Ara os meios para voar, além de permitir que Hath Set criasse a adaga que os mataria, porém os vincularia à um ciclo de ressurreições. O casal e seu inimigo teriam vivido e revivido desde então ao longo dos séculos. Só que nessa época em que os dois entraram pra nova SJA, Kendra não tinha as memórias de Shiera, o que fez com que rejeitasse as declarações de amor de Carter. Katar foi dado como morto, Shayera reapareceu mas foi realocada para Thanagar em definitivo e tudo parecia bem. A mensal própria do Gavião rendeu uns 4 anos de boas histórias, veio a Crise Infinita, mataram Shayera, Kendra assumiu a mensal, Carter sumiu, voltou e bora pras complicações da vez.

Jim Starlin entrou na baderna e tentou criar uma nova nova NOVA explicação pro Gavião. O editorial deu carta branca e tudo mais. O cara escreveu e desenhou um especial onde uma entidade cósmica brutona, do naipe do Thanos, lhe explicou que tinha mais coisa nesse angu, que ele na verdade era o Katar Hol, que uma ameaça mega hiper bombadona tava chegando e aí o editorial mudou de ideia, pagou o Starlin e mandou todo mundo esquecer essa história. Já entenderam quem complica a vida do Gavião, né?

Veio A Noite Mais Densa, mataram Gavião e Moça-Gavião. Depois ressuscitaram os dois. Kendra volta a ter as memória de Shiera. Aí mataram ela de novo em O Dia Mais Claro. Veio o reboot dos Novos 52. O Gavião volta a ser Katar Hol, Shayera não é mais esposa dele, Rob Liefeld entra na jogada e já dá pra saber que a coisa está em um nível de caos fora das escalas. Matam o Katar Hol. Carter Hall reaparece na saga Metal. Kendra reaparece como chefe dos Falcões Negros e no Brasil isso é motivo de riso nervoso. Robert Venditti começa uma nova fase, com Carter Hall em uma mensal com arte de Brian Hitch, onde explicam TUDO DE NOVO PELA, HEHEHE, ENÉSIMA VEZ (ouça o Omniverso sobre). Agora não faz mais diferença ele ter asa ou não, usar o elmo de gavião, ser chamado de papagaio, periquito ou Louro José. Está mais pra Homem Imortal. Vai lá, pega o encadernado recém publicado pela Panini e veja se estamos mentindo.

Moral da história, Hawkman não é um personagem complicado. Editores ou roteiristas complicam tudo. Pegam e se apegam às origens, ficam presos em um loop pra tentar explicar o que não é necessário, quando deviam apenas contar histórias de um sujeito de asas que enfrenta ameaças, caça criminosos e salva pessoas em perigo. Viu só? Acabamos de descomplicar o Homem-Gavião.


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