Tom King, Jae Lee e o ódio que cega

A mais recente confusão nos bastidores dos quadrinhos norte-americanos envolve, novamente, o Movimento Comicsgate. Então vamos começar pelo pivô da arenga, esclarecendo do que se trata. O que é? Quem faz parte? O que pretende? Bom, é uma idiotice, feita por idiotas, fomentando ódio e discriminação contra negros, mulheres e LGBTs, apenas por esses grupos sociais estarem se tornando parte da indústria dos quadrinhos. Pois é, idiotas. Mas perigosos e danosos. Inclusive por estimularem confusões tipo essa da qual vamos falar.

Um roteirista em franca ascensão e com influência cada vez maior junto aos editores, usou seu perfil no Twitter para anunciar que havia descoberto o envolvimento de um desenhista veterano e renomado com a produção de capas para um projeto ligado à um comicsgater, sendo que esse artista teria feito também uma capa variante para um outro quadrinho, desse roteirista denunciante, o que lhe deixou indignado a ponto de procurar seus editores e eventualmente provocar o cancelamento dessa tal capa variante.

O roteirista é Tom King, estrela ascendente do momento, o artista é Jae Lee, com mais de três décadas na indústria.

E o problema é que, por causa dos idiotas perigosos e danosos, até quem os enfrenta acaba fazendo idiotices e mesmo quem está alheio é atingido por essas idiotices. Mas vamos fazer com o senhor King o que ele não fez com o senhor Lee. Vamos tentar entender antes de sair apedrejando, dar o benefício da dúvida antes de julgar cegamente.

Nos últimos quatro anos, nos EUA, incidentes aparentemente isolados se revelaram parte de uma ação coordenada, planejada e direcionada contra o esforço para trazer diversidade à uma indústria conhecida pela falta desse elemento. Sim, ninguém é ingênuo de acreditar que DC Comics e Marvel passaram a contratar mulheres, negros, LGBTs e outras minorias única e exclusivamente por um compromisso com suas agendas e pautas. As empresas queriam diversificar seus ganhos, melhorar imagem, acompanhar as tendências. Mas ao menos estavam servindo aos interesses de grupos sociais cada vez mais vocais e atuantes. Eis que um punhado de artistas, roteiristas e leitores racistas, misóginos e homofóbicos se sentiram atingidos por isso. Mais ainda, enxergaram uma ameaça, vejam vocês. E não demorou para se organizarem, criando um movimento online de perseguição, constrangimento, ameaças e tudo mais que somente pessoas maldosas, desocupadas e sem nada de melhor para fazer com a vida seriam capazes.

Tom King foi alvo, viu seus amigos serem alvos, acompanhou enquanto colegas de ofício eram atingidos. O camarada obviamente ficou indignado, ressentido e na defensiva. Como todos com um pingo de juízo e bom senso ficariam. E aí, meus amigos e minhas amigas, acontece uma pequena vitória perversa de quem faz o que é ruim. Causar rachaduras, minar a ponderação, provocar em pessoas boas, corretas, que estão do lado certo, um dano quase imperceptível… Despertar o rancor.

E por mais justificado que alguém esteja, sentir rancor é uma merda. Você fica arisco, esperando a primeira chance para revidar. Isso mexe até mesmo com o orgulho, a vaidade, resvala no narcisismo. Foi o que aconteceu.

Jae Lee foi denunciado, acusado, exposto, vilipendiado e julgado no tribunal mais volátil da história humana, a internet. Aí vemos um alerta para quando encontrarmos os próximos “réus“. Calma, antes de mais nada, antes mesmo de questionar alguém por conta de uma suspeita, questione a si mesmo. Se permita indagar “Ele ou ela fez mesmo isso?”, para só então procurar o suspeito ou suspeita e, aí sim, lhe dar o benefício sagrado da dúvida. “Olha, me disseram que você fez isso… Você fez?”

E sim, Jae Lee FEZ. Mas, ainda assim, não seria o caso para receber o tratamento que vimos. Ele realmente desenhou uma capa ou capas para alguém que defende o movimento Comicsgate. Só que, diferente da polarização imbecil que domina a maioria dos embates que vemos, nem tudo nessa vida é direita e esquerda, sim e não. Existem variáveis, ângulos e perspectivas. Lee, embora artista veterano, declarou não dar atenção aos bastidores ou intrigas de bastidores da indústria. Teria dito, inclusive, não ser usuário do Twitter, de que nem fazia ideia dessa praga chamada Comicsgate.

Claro, toda decisão tem um preço. O fato de se manter alheio às questões dessa magnitude, em tempos tão conturbados, é um direito ao qual Jae Lee se permitiu, mas que lhe privou de um antídoto para muitos venenos, o conhecimento. Se buscasse informações, se mantivesse a si mesmo atualizado sobre a situação conflitante envolvendo os comicsgaters, conheceria com antecedência as pessoas para as quais prestaria serviço, com certeza não teria sido pego dessa forma em uma turbulência que optou por ignorar.

Em paralelo à tudo isso, um OUTRO caso com os tais comicsgaters no meio acabou servindo para mostrar que é possível enfrentar imbecis sem perder a capacidade de considerar nuances e manter posicionamentos sem ser injusto. A roteirista Gail Simone, combativa nessas questões, também alvo de ódio por parte dos tais idiotas, se viu em uma sinuca de bico quando um amigo próximo, manda-chuva da editora Dynamite, foi exposto por ter feito negócios e apoiado integrantes do Comicsgate. Ela expressou sua tristeza, mágoa e discordância, mas ressaltou a esperança de que ele, o amigo-editor, reveja seus posicionamentos, deixou claro que existe o cinza, em situações que queremos pintar como tendo apenas duas cores opostas. Gail conseguiu manter prudência e serenidade.

Nada é tão simples na vida, quanto o ódio tenta nos fazer enxergar. É o ódio que motiva os comicgaters a ver pessoas que não são iguais a eles como inimigos. E foi esse ódio que de certa forma acabou sendo refletido nas ações de Tom King, ainda que sua motivação tenha sido outra. Só que ele errou. E feio. Primeiro por se achar um paladino inquestionável, que nem precisava questionar seu alvo. Segundo, por se aproveitar do privilégio e poder que desfruta no momento, para atingir alguém apenas por “ouvi dizer”. Terceiro, por ceder ao próprio narcisismo e correr pras redes sociais detonando a reputação de alguém, enquanto esperava os aplausos da galera por sua atitude.

Agora temos as repercussões. King deu uma ré, inocentando Lee. Mas, como dizem no popular, o desmentido nunca tem a mesma força de uma acusação injusta. O artista obviamente ficou com o prejuízo, nem que seja o emocional. É um alerta para todos que possuem influência e alcance nesses tempos de redes sociais. Mas também para quem é audiência, que faz parte da multidão.

Não vamos nos tornar aquilo que combatemos. Precisamos vencer o ódio, não nos deixar contaminar por ele. Existe a expressão “ódio cego” e seria bom meditarmos sobre isso. O ódio não cega apenas os maus…


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