Transformers nas HQs, parte 2: Marvel UK

Na primeira parte desse especial, falamos do começo de tudo na Marvel gringa. Mas do outro lado do oceano, os Transformers também fizeram muito sucesso e muita diferença pro atual cânone.

 

Rodimus Prime, Galvatron e… Death’s Head

Mesmo a Inglaterra sendo um mercado bem menor que os EUA, exportar seus produtos culturais para velha metrópole fazia muito sentido pros americanos: a língua não é uma barreira, há uma construção cultural semelhante entre os países que aproxima os tons e gostos, havia acordos comerciais facilitadores. Assim, nos anos 80 a Marvel tinha seu braço britânico que cruzava o oceano, a Marvel UK (ou “United Kingdom”).

Mas diferente do formato mensal dos gibis americanos, na Inglaterra a tradição era a de publicações com lançamento semanal, tal qual a 2000AD, Heavy Metal e outros grandes títulos num formato maior, magazine. Assim, uma edição mensal de 24 páginas da Marvel americana era dividida em 3 capítulos de 8 páginas semanais da publicação londrina.

Por essa razão matemática, faltavam aí 8 páginas pra fechar o mês. Como já era costume para as publicações Marvel “normais”, esta falta era preenchida com publicações próprias, de diversos escritores e desenhistas contratados ou freelancers da Marvel UK. Esse formato de publicação filler com artistas locais, aliás, foi o responsável por revelar diversos talentos ingleses para o mercado americano de quadrinhos e para o mundo como, por exemplo: Alan Moore, Grant Morrison, Alan Davis, Brian Hitch, Dan Abnett, Andy Lanning, etc, etc. A lista, como podem imaginar, é imensa.

Por terem publicação apenas local e serem curtas, as histórias produzidas sofriam menos interferência editorial da Marvel USA e mesmo da Hasbro, o que garantiu aos seus escritores maior liberdade criativa, apresentando novos personagens e histórias que, com o tempo, se tornariam cânone adorado e adotado pelo fandom. Em alguns casos, os títulos americanos foram exportados com alterações que os tornassem mais palatáveis ao público britânico, como foi o caso de GI Joe, que perdeu seu tom americanista e se tornou uma “força militar de paz internacional”, a Action Force, que fez tanto sucesso que gerou uma linha de brinquedos própria no mercado local – mas isso é historia para outro post, quem sabe…

Com Simon Furman a cargo dos roteiros dos Transformers da Rainha, as simples histórias “pra fechar o mês” ficaram ainda mais elaboradas, criando a sua própria “submitologia”. Para se ter uma ideia, todo o universo pensado para os gibis americanos acabou se tornando apenas uma fração do enorme lore criado por Furman e seus colegas. O escritor trouxe a este universo uma maior integração da vertente “espacial” da série original, mostrando cybertronianos espalhados pelo universo, interagindo com outras raças, sendo caçados pelo Death’s Head (personagem criado pelo Furman para a Marvel UK, que recentemente ressurgiu no gibi do Homem de Ferro escrito pelo também britânico Kieron Gillen).

Basicamente, é assim que o lore britânico engloba o original (fonte: TFWiki.net)

No primeiro momento, ainda incertos do eventual sucesso da franquia no país, a Marvel UK adotou a linha editorial básica, que já dera certo nos personagens americanos lá publicados: eram histórias “pra fechar o mês” mesmo, contos curtos de 8 páginas que não interfeririam na cronologia. Mas Furman ousou, e buscou contar mais do passado dos Transformers, histórias que estariam acontecendo enquanto outros plots eram contados na edição americana. Ele deu consistência e criou base para muitos elementos da mitologia que seria oficializada anos depois.

As publicações inglesas ficaram famosas ainda por melhor desenvolver os dinobots, a equipe renegada de Autobots selvagem demais para conviver com os demais, mas com um forte senso de nobreza e heroísmo, apesar da destruição causada em suas ações heroicas. Ficamos conhecendo a história da rivalidade entre o dinobot Swoop, que perdeu seu nome e sua honra em batalha com o predacon Divebomb. Outra rivalidade criada foi entre Ultra Magnus e Galvatron, que gerou batalhas épicas no passado e futuro, na beira de um vulcão e no meio das estradas americanas.

 

Sem chances contra Divebomb, Swoop apanhou feio e jogou sujo, mas teve sua vergonha escondida pelo seu líder Grimlock

Tendo estabelecido o sucesso das suas histórias originais, num segundo momento editorial Furman conseguiu não apenas trazer o foco dos leitores para as publicações locais, como ainda adaptou de forma única a nova mitologia da franquia apresentada no filme de 1986,  de uma forma que nem a Hasbro e nem a Marvel haviam pensado. O autor se concentrou no fato de que a história do filme deu um salto no tempo, no então longínquo ano de 2006, e brincou com o conceito de que o novo (constituído por Rodimus Prime, Ultra Magnus, Galvatron, etc.) por diversas vezes viajaria no tempo, encontrando o elenco clássico, interferindo nos acontecimentos e corrigindo “falhas temporais” ocorridas.

 

Os Wreckers: Topspin, Sandstorm, Broadside, Rack ‘n Ruin, Twintwist e Ultra Magnus. A equipe pega-mata-e-come dos autobots

E foi nessa linha temporal futura que a Marvel UK cravou ainda mais contribuições à franquia. Furman pensou numa “tropa de elite” autobot, formada pelos robôs mais badass, enviados em missões com pouca ou nenhuma chance de sobrevivência, os Wreckers. Trabalhou melhor a organização das facções em guerra, e da subfacções que surgiam em cada lado, e criou personagens para papéis específicos em suas histórias, que não teriam bonecos nas prateleiras até 30 anos depois, mas que se tornaram favoritos dos fãs.

O peso da narrativa e o Marvel Way também estavam lá. Noutro exemplo de história dramática que se tornou amada pelos fãs e canônica chamada Target: 2006, na véspera da importantíssima Missão Vulcano, o wrecker Ultra Magnus tem que retornar ao passado e descobrir o destino da desaparecida Matriz da Liderança, enquanto no futuro, a equipe, apreensiva com a sua ausência, presencia o avanço inimigo e se vê sem escolha, adiantando o início da operação de ataque, ao custo do sacrifício do seu líder, Impactor.

GRANDES… TRANSFORMAÇÕES

E aí é que acredito que estava o grande segredo do sucesso desse braço dos quadrinhos de Transformers: enquanto a qualidade e ritmo do título americano eram constantemente afetados pela interferência editorial da Hasbro que exigia que os novos brinquedos que chegavam nas prateleiras fossem introduzidos de imediato nos gibis, a publicação inglesa passava abaixo do radar, se descolava dessas demandas e estava livre para contar histórias que eram verdadeiros “enquanto isso…” mais instigantes do que o que estava acontecendo no palco principal da franquia.

O fato da publicação ser capitaneada por um autor talentoso e apaixonado pelos personagens potencializou absurdamente a qualidade e garantiu o sucesso até hoje dessas histórias. Pode-se dizer, sem medos, que Furman fez pelos gibis dos Transformers o que o Chris Claremont fez pelos dos X-Men. Sua reputação o fez retornar à franquia por demanda popular, e ele se tornou uma lenda nas convenções e fóruns online que discutem seu estilo e seus cacoetes narrativos (que os americanos chamam de comic tropes), os furmanismos.

 

Geoff Senior não deixava nada a dever à força das páginas dos títulos americanos

Não podemos deixar de destacar a contribuição artística que moldou muito da fama desse título. O desenhista Geoff Senior foi o responsável pela maior parte das edições, com um estilo cru mas com forte técnica e impacto narrativos, num estilo que lembra bastante um Sal Buscema em sua força e efetividade, mas com identidade única enfim – como pudemos ver nas ilustrações todas até aqui. Senior chegaria a desenhar alguns títulos periféricos da Marvel USA, mas infelizmente nunca caiu no gosto dos ianques. O artista ainda está em atividade e participa de diversas convenções da franquia, onde tem bastante reconhecimento dos fãs. Em 2018 realizou uma campanha de financiamento coletivo do seu novo gibi, Unrustable Bastards, novamente no tema de robôs, apelando ao fandom de Transformers.

Outro grande expoente da arte dessa época foi o Andrew Wildman, que assumiu o título em sua reta final após a saída do Geoff Senior e marcou com seu estilo mais americano, mais detalhado e igualmente forte em narrativa. Wildman ainda teve alguma repercussão nos EUA, chegando a desenhar algumas edições de Homem-Aranha 2099 e a primeira minissérie X-Men Animated, que adaptou o desenho dos X-Men em quadrinhos (ambos os trabalhos publicados aqui). Recentemente, Wildman e Senior retornaram para capas e desenhos de algumas edições da IDW Publishing, do que falaremos em outro texto.

 

O traço do Andrew Wildman, na última edição da versão inglesa de The Transformers

CHÁ DAS CINCO EM CYBERTRON

A popularidade das histórias inglesas chegou aos EUA mesmo numa época anterior à internet, e chamou a atenção da própria Marvel, que levou o Simon Furman para o título principal nos EUA numa tentativa de resgatar a popularidade agora em queda da franquia. Furman deu uma bela sobrevida ao título, que mencionamos na parte 1, apesar das constantes ameaças editoriais de cancelamento, e conseguiu encerrar seu arco com o Unicron, que amarrou muitos plots do título inglês – que a essa altura já dividia espaço com Action Force (aqueles GI Joes britânicos).

Transformers UK, como ficou conhecido pelo fandom nas últimas décadas, não caiu jamais no esquecimento. Tanto seus conceitos expandiram o imaginário dos fãs em convenções e fóruns online, quanto foram em boa parte adotados como cânone em diversas mídias (os Wreckers aparecem tanto nos gibis recentes, no desenho Transformers Prime e nos filmes duvidosos do Michael Bay, por exemplo). Tanto é que recentes volumões foram publicados pela IDW sob a bandeira Transformers UK Classics.

Mas após o fim do título original, Furman permaneceu escrevendo pra Marvel USA, assumindo títulos como Mulher Hulk após a saída do John Byrne, onde ele “importou” alguns personagens da contraparte inglesa da editora como o Death’s Head, e a dupla Motormouth & Killrazor. Falaremos muito do Furman numa parte futura da nossa série, pois suas contribuições ao cânone e à mitologia dos Transformers não se limitaram a esta época – e nem à Marvel.

Mas nem mesmo a iniciativa “G2”, que tentou ressuscitar o interesse do público nos brinquedos e gibis dos Transformers, teve qualquer efetividade em nenhum dos dois lados do Atlântico, e a franquia entraria num estado de dormência pela próxima década, até ser ressuscitada e mantida viva em aparelhos por uma série de pequenas editoras.

É dessa fase sombria que trataremos na parte 3 da nossa série…


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