Mulher-Maravilha

4.0

NOTA DO AUTOR

Algo que escrevi sobre meu racismo inconsciente é verdadeiro, também, sobre meu machismo: desaprender toda uma cultura sexista, alimentada diariamente pela sociedade e pela mídia, é uma tarefa dificílima.

Minhas muitas tentativas de começar este texto afirmando que a Mulher-Maravilha não é, nem de longe, um ícone da estatura de um Batman ou Superman esbarraram na percepção de uma injustificável má-vontade. Ela é, sim, um ícone muito forte e de muito alcance. O problema é que, sendo eu homem, criado dentro de uma sociedade que subestima as mulheres, “não posso” tê-la como um modelo a aspirar. Tanto assim que não existe um “Homem-Maravilha” nas HQs da DC Comics, embora existam Batgirl, Batwoman, Supergirl e Superwoman.

Quer dizer, tudo bem que mulheres sintam-se confortáveis em buscar inspiração nos heróis, mas, homens buscando inspiração em heroínas? Isso, o status quo não permite, muito menos estimula. Dá o que pensar, né não?

Fato é que, embora muito poderosa como ícone, a Mulher-Maravilha não tem um gibi icônico pra chamar de seu. Os discordantes irão chamar minha atenção para a clássica fase de George Pérez, na segunda metade dos anos 80. Concordo, é uma fase memorável, muito bem escrita e espetacularmente desenhada. No começo desta década, houve a incrível reinvenção de Brian Azzarello e Cliff Chiang, dentro do reboot da DC conhecido como Os Novos 52. Entre estas, brilharam a versão escrita por Greg Rucka, no começo da década passada; a guerreira sedenta de sangue de Reino do Amanhã (Mark Waid e Alex Ross, 1996); a Diana horrivelmente desfigurada em Justiça (Alex Ross e Jim Kruger, 2005).

Quer dizer, uma penca de gibis sensacionais, ninguém colocará isso em questão. Entretanto, nenhum quebrador de paradigmas do gênero, em que Diana brilhe sozinha e torne-se um mito muito maior que ela própria, como o Batman tem seu Cavaleiro das Trevas (Frank Miller, 1986) e o Superman tem seu Grandes Astros: Superman (Grant Morrison e Frank Quitely, 2005-2008).

Então, de certa forma, é compreensível que muitos leitores sintam que Diana está meio “empurrada” pela DC numa Trindade com dois ícones de históricos muito mais ricos. Não se trata de pensar “ah, ela é mulher…”, mas admitir que, embora a DC tenha empregado alguns de seus melhores talentos, em esforços sazonais, para fazer a personagem crescer, ainda não existe um divisor de águas protagonizado por ela. Curiosamente, é do pantanoso terreno em que a DC mais patinou e afundou nos últimos anos que surge o mais bem-sucedido dos esforços: Mulher-Maravilha, o filme, é o mais bem-acabado produto do universo cinematográfico da editora e garante-lhe uma pausa pra respirar, após sequência de equívocos bem-intencionados (O Homem de Aço, Batman vs Superman) e indefensáveis (Esquadrão Suicida).

Ecos das boas fases da personagem são identificáveis no filme¹, principalmente as de Pérez e Azzarello. A história segue de perto a origem clássica: em uma Themyscira indescritivelmente bela, Diana (Gal Gadot, esbanjando adequação à personagem) nasceu moldada do barro por sua mãe, a rainha Hipólita (Connie Nielsen), e foi magicamente trazida à vida por Zeus. Ferozmente treinada nas artes de combate por sua tia, Antíope (Robin Wright), Diana, ainda assim, é superprotegida pela mãe, que, a todo custo, tenta poupá-la do contato com o mundo dos homens e parece esconder alguma verdade sombria.

Um dia, chega à ilha um homem, o coronel Steve Trevor (Chris Pine), quando seu avião se despedaça próximo à praia. Salvo por Diana, Trevor tem, em seu encalço, uma frota alemã que entra em mortal conflito com as amazonas. Agora pessoalmente afetada pela violência, Diana enxerga no conflito (a 1ª Guerra Mundial, no começo do século XX) a influência de Ares, o Deus da Guerra, e parte para ajudar o mundo do patriarcado. Além disso, vai poder ficar perto de Steve, por quem gradualmente se apaixona (e a química do casal está aprovada).

Patty Jenkins (diretora de Monster: Desejo Assassino, 2003) revela-se uma aposta acertada da Warner, ainda que não pareça ter tido tanta liberdade assim (falaremos mais disso daqui a pouco). Os dois terços iniciais de Mulher-Maravilha são incrivelmente certeiros na paciente construção da identidade de Diana e nas batalhas lindamente coreografadas (embora com ajuda de alguma CGI, diga-se), tanto aquela na praia de Themyscira (em que cada intervenção das amazonas é um pedaço do seu queixo que vai ao chão) quanto o primeiro contato de Diana com a guerra nas trincheiras².

Nesta segunda, em particular, o crescendo emocional da trilha sonora dá o tom perfeito para a esperada intervenção da heroína, e ela não decepciona. Quando Diana sai da trincheira, única mulher à vista por quilômetros e, sozinha, interpõe-se a uma saraivada de tiros e bombas, resistindo a tudo com graça e bravura, ela está levando todas as mulheres do mundo consigo. É arrepiante, nada menos.

A partir daí, porém, a gente começa a perceber uma mudança no tom do filme. De certa forma, uma “sombra” tenta apossar-se dele – e não estou falando da ambientação noturna ou das intenções do Deus da Guerra. Falo de uma mão hipotética, retirando toda a graciosa sutileza do trabalho de direção de atores de Jenkins e enchendo o filme com câmera lenta, ação frenética e diálogos que o elenco parece estar cuspindo a contragosto. Onde já vimos filmes assim antes?

A Warner, Patty Jenkins e o próprio hão de negar, mas, para mim, não há como deixar de perceber o dedo… melhor dizendo, as duas pesadas mãos de Zack Snyder inteiras, neste terço final do filme. É uma mudança absurda de estilo e clima, em direção a tudo aquilo que não gostamos nos filmes anteriores. Talvez jamais saibamos, mas a impressão é a de que a Warner não confiou suficientemente em Jenkins ou cedeu à pressão de Snyder (um sujeito que lida muito mal com negativas) para intervir e “ajudar” a manter o tom que ele julga ideal para o UCDC. Ela, porém, assinou o filme sozinha e há de enfrentar as críticas a este trecho com a elegância que lhe é peculiar.

Peço licença para elegantemente duvidar, caros Patty e Zack. Está tudo muito na nossa cara: a direção de atores débil, a destruição barulhenta, o excesso de flare e raios… Tudo que o filme tinha acertadamente “esquecido” até aquele momento. Já começo a torcer pra que o blu-ray inclua um final diferente – não exatamente alternativo, mas filmado no estilo próprio de Patty Jenkins. Tenho certeza que vamos lamentar não ter sido o oficial.

Apesar desse problema, o filme se garante como um todo, porque foi bom demais no começo e no meio – discordo, inclusive, que os vilões sejam meia-boca, como andei lendo por aí. Existe uma interessante tragicidade na Dra. Veneno, e Ares é mais convincente em sua forma humana do que quando ganha seu aspecto divino. Tudo se conclui de forma meio apressada, mas, no total, isso pesa pouco contra o filme.

Mulher-Maravilha, espera-se, inaugura uma nova fase para a DC no cinema, que alie sucesso de bilheteria com respaldo da crítica. Que o próximo, Liga da Justiça (em novembro), seja capaz de aproveitar esta onda e surfá-la com equilíbrio.

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NOTAS DE RODAPÉ (COM SPOILERS):

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1. É fácil identificar algumas pin-ups clássicas de Diana nas HQs, como os momentos em que ela aparece cavalgando ou erguendo um tanque. Leitores familiarizados com a fase escrita por Brian Azzarello vão identificar sua versão de Ares, que tinha a aparência do próprio escritor – melhor do que aquela armadura pouco imponente, diga-se.

Pegando o caminho inverso, temos a constatação de que o visual de Gal Gadot foi tão unanimemente aprovado, que passou a ser o uniforme oficial da personagem nas HQs, quando o Rebirth veio ao mundo, pouco depois da estreia de Batman vs Superman.

O que aconteceu com as Amazonas? Será que Diana retornou à Themyscira?

2. Estamos falando de um universo compartilhado, certo? Se é possível criticar algo em Mulher-Maravilha, é da falta de fan service. O filme é a “véspera” do filme do supergrupo mais importante da DC Comics; entretanto, falta-lhe um gancho poderoso para Liga da Justiça, ou lembretes de que estamos no mesmo universo que outros heróis. Por que não aproveitar a passagem pela Inglaterra e colocar na tela um oficial de sobrenome Pennyworth (de Alfred, mordomo de Bruce Wayne), por exemplo? Ou astrônomas em Themyscira observando Krypton, 20 anos antes de sua explosão? Quem sabe um ataque frustrado de Darkseid à ilha? Ou o avistamento, mesmo que bem de longe, de um Lanterna Verde em patrulha? Embora o filme seja digno sem isso, coisas assim fazem um afago gostoso no coração do leitor. (Agradecimentos ao jagunço Reginaldo Yeoman por discussões que levaram a esta “cena pós-crédito”.)

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