No inferno há 25 anos

A história da Image Comics você já sabe de cor e salteado. Pelo menos, deve ter ouvido sobre, inúmeras vezes e em inúmeras versões. Mas, o básico é aquele de sempre: os principais artistas da Marvel ficaram putos em como as coisas eram conduzidas por uma série de razões e resolveram abrir sua própria editora; e assim o fizeram. No início dos anos 1990, nascia a Image, onde os artistas teriam total controle sobre suas criações – e ficariam com todo o lucro que aquilo gerasse, incluindo venda de camisetas, por exemplo.

Dividiram-se em estúdios – que já existiam – que ficariam sob um mesmo teto editorial. Juntos, tocariam o negócio. Como seus nomes vendiam gibis mais que água no deserto, optaram pelo óbvio: lançaram títulos a rodo. Ok, estavam no auge de sua forma e queriam explorar sua criatividade ao extremo. Apenas dois deles resolveram focar apenas num único título e investir tudo naquele universo, com personagens que haviam criado anos antes de forma despretensiosa. Um deles foi Erik Larsen, que praticamente redefiniu o Homem-Aranha. Larsen centrou suas forças para desenvolver o Savage Dragon, que pode ser assunto pra uma outra hora.

O outro, curiosamente, também vinha de uma passagem ultrabadalada pelo Homem-Aranha. Todo mundo comprou e leu seu gibi do Aranha. Todo mundo mesmo. Na Image, Todd McFarlane resolveu investir tudo em uma criação antiga sua, o Spawn. Era o gibi perfeito para o momento?

McFarlane mostrou-se, antes de tudo, um grande empresário, com grande tino comercial e vislumbrando as mais variadas formas de ganhar (muito) dinheiro com sua criação. Um personagem sombrio como o Batman (Batman – O Retorno estreou no mês seguinte, no dia 3 de julho de 1992), que se movimentava como o Homem-Aranha (e ele abusou das poses), com um passado incerto que o atormentava igual ao Wolverine. A ligação com o inferno e o diabo em pessoa aumentavam o tom sombrio que o gibi pedia, criava uma mitologia que nada tinha a ver com o bem, planetas longínquos ou deuses bondosos de luz. Complemente isso com inimigos reais, com intrigas de bastidores envolvendo grandes corporações e o Exército. Era, sim, diferente de tudo que você tinha até aquele momento, ainda que buscasse suporte em dois dos maiores heróis do momento (Wolverine não era porra nenhuma em 1992, não force a amizade).

Como se não bastasse, Al Simmons, o protagonista, era negro, casado e tinha uma filha! Ou seja, a história já começava com uma grande “carga cronológica” que deixava Clark Kent e Peter Parker parecendo personagens rasos. McFarlane pensou em tudo. Encheu a revista de violência, sangue, um herói sem memória e o inferno de maneira mais crua, ainda que mágico e cheio de camadas. As ruas de Nova Iorque, onde a história se passava, fediam, eram perigosas e habitadas por todo tipo de gente à margem da sociedade. Não havia beleza alguma em Spawn. Quer dizer, somente uma: Wanda Blake, a linda viúva do protagonista e mote principal da história nesse início. Sim, a viúva: Spawn começou sua própria saga morto. A ex-esposa casou-se com seu melhor amigo, com quem teve uma filha.

McFarlane era esperto. Sabia que seu traço estava em alta e vendia fácil. As pessoas reconheciam e admiravam seu estilo. Ele deu tudo de si para fazer de Spawn um grande sucesso comercial. Caprichou nos desenhos como não tinha feito até então. Achávamos, inocentemente, que seu auge estava lá no Homem-Aranha. Não podíamos estar mais enganados. Ele não só mostrou que podia fazer mais, como fez: os designs das páginas (veja os quadros e as onomatopeias), a composição das cenas, tudo era um deleite visual em Spawn. Até mesmo os balões eram uma coisa chamativa. Você olhava para aquilo com algum fascínio. Por outro lado, McFarlane também sabia que a outra parte era seu calcanhar de Aquiles: os roteiros. Nisso, ele era muito ruim. Tão ruim que a narrativa era prejudicada; as primeiras edições são praticamente um catálogo de pin-ups do Spawn, todas muito lindas.

Esse “detalhe” ele conseguiu mascarar durante sua passagem por uma nova revista do Homem-Aranha, quando assumiu também a escrita. Em Spawn, ele teve liberdade para fazer o que bem quisesse, mas foi inteligente o suficiente para chamar três pesos pesados da indústria e um do underground para darem aquela guaribada no seu personagem. Isso, em menos de um ano de publicação. (Verdade seja dita, somente os dois primeiros – Alan Moore e Neil Gaiman – deram alguma substância ao personagem e isso foi muito explorado dali em diante.)

E quanto a nós? Em tempos pré-internet, nos informávamos como dava e volta e meia Spawn era citado nas pouquíssimas revistinhas publicadas aqui no Brasil. Todo mundo ficava MALUCO com aquele visual infernal, com cores fortes e poses espetaculares. Quem raios não queria ler aquilo? Esperamos por longos quatro anos até que, em março de 1996, a Abril Jovem publicou Spawn #1. A espera foi compensada por uma grande qualidade editorial: formato americano (numa mensal? Coqueluche naqueles tempos), papel pra lá de especial e apenas 32 páginas. Sim, não era um mix: você comprava Spawn (a revista) para ler… Spawn! Sem pegadinhas! A revista não vinha com, sei lá, Gen13 e Wildstar fechando o mix. Prova do sucesso foi a longevidade da revista: seguiu até a edição 150, já em dezembro de 2005, quando a Abril nem publicava mais quadrinhos Marvel e DC, além de especiais, minisséries e até mesmo crossovers (só eu adoro Batman e Spawn?).

Aquela primeira edição, lançada 25 anos atrás, talvez não tenha gerado o peso editorial que seu criador esperava – se é que esperava isso mesmo. Um clássico? Não chega nem perto disso. Talvez poucos se recordem daquela primeira história, quando o herói ainda nem sabia o que ou quem era, o que podia fazer ou quem deveria enfrentar. Com certeza, lembram-se das páginas cheias, riquíssima de detalhes para compensar os cenários preguiçosos ou quase inexistentes. Bem maior que essa primeira edição foi o império construído por McFarlane, gerando um filme bem antes dos mutantes de Bryan Singer e Matrix, uma excelente animação que quase ninguém viu (aquela da HBO), jogos de PlayStation, milhares de produtos licenciados e, claro, os bonequinhos.

Muita coisa mudou nesses 25 anos. Nem mesmo a Image é a mesma de 1992. No entanto, apesar de muitas mudanças no percusso, Spawn segue vivo, sendo publicado ao menos lá fora. Rumores até de um novo filme já surgiram na internet. O que há para comemorar nessa data? No mínimo, a lição de seu criador: aposte no seu sonho e invista no seu talento. Por mais infernal que ele seja.

 

PS: o primeiro 7 Jagunços da Derrota que gravamos foi sobre o Spawn. Ouça AQUI.

 

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