Desde que foi anunciado, em 2016, como um projeto oficial da DC/Warner, um filme do Coringa parecia uma péssima ideia. Não fazia tanto tempo assim que Heath Ledger tinha hipnotizado o mundo inteiro com o que, para muita gente, havia sido a versão definitiva do personagem, e menos ainda desde que a interpretação pífia de Jared Leto quase destruiu a reputação do vilão e tornou-se uma das razões pelas quais Esquadrão Suicida é um filme a ser evitado.
Imaginar um filme inteiro só com o Coringa de Leto parecia o fim dos tempos e o provável último prego no caixão das ambições da DC de criar um universo compartilhado que rivalizasse com o dos Marvel Studios. Só que, a partir daí, a DC colheu sucessos com Mulher-Maravilha, Aquaman e Shazam, o que, em parte, ajudou a gente a esquecer o retumbante fiasco de Liga da Justiça.
Neste meio tempo, houve ainda um monte de notícias preocupantes sobre um aguardado novo filme do Batman. Ben Affleck, a quem seriam dados o protagonismo e a direção, foi limado de todo e qualquer projeto ligado ao Morcego. Por outro lado, chegava a nós uma notícia que parecia trazer algum alento: a contratação de Joaquin Phoenix como o Coringa do tal filme-solo abriu a possibilidade de termos, pelo menos, uma atuação que rivalizasse com a de Heath Ledger. Além de ótimo ator, Phoenix costuma ser bastante criterioso na escolha dos projetos em que se envolve – então, ele certamente viu em Coringa, o filme, algo que ainda não podíamos ver.
As primeiras fotos e os pequenos vídeos das gravações faziam parecer que Phoenix havia encontrado um tom (corporal, pelo menos) interessante para o personagem. A maquiagem era bem diferente das versões anteriores, com um estilo bem circense, quase infantil, mais próxima daquela de um palhaço autêntico.
Só que começou, também, uma espécie de cruzada de desinformação, por parte do próprio estúdio e do diretor Todd Phillips. Já era difícil sentir firmeza no pulso de um cara que comandou uma das comédias mais inconsequentes – e superestimadas – dos últimos tempos (Se Beber, Não Case), mas, quando ele vinha a público dizer orgulhosamente que o filme não se inspiraria em qualquer história célebre do Coringa, a gente sentia uma pontada de frustração pelo que se aproximava. Pior ainda quando as notícias davam conta de detalhes absurdos para quem conhece o personagem minimamente: boatos de que o Coringa seria uma espécie de anti-herói em luta contra o sistema. Esta impressão, para nosso desespero, era reforçada pelo tom grandiloquente e autopiedoso dos trailers.
Não poderíamos estar mais errados.
Coringa nos oferece uma espetacular quebra de expectativas: é um filme bem escrito, bem dirigido e não toma liberdades demasiadas com o mais icônico dos vilões. É possível reconhecer nele elementos de A Piada Mortal, de Alan Moore, mas não haveria forma de ser uma adaptação direta, já que o longa abre mão da presença do Batman.
O filme se passa no final dos anos 70, em meio à recessão econômica americana que deixa a população à beira do desespero. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço de aluguel que cuida da mãe doente e, aos poucos, sofre uma série de reveses que desencadeiam uma loucura que (não se engane) sempre esteve ali. Lembre-se do que é dito por ele em A Piada Mortal: basta um dia ruim para o mais são dos homens cometer uma loucura. Imagine alguém em uma espiral descendente que parece não chegar ao fim…
É preciso entender, porém, que o Coringa não é uma vítima da sociedade, no sentido de que não é isso que o enlouquece – a sociedade de Gotham ESTÁ doente, os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Ao contrário do que tem sido especulado ou decretado por leituras desatentas, aqui e mundo afora, o filme não glorifica a violência contra os ricos, nem se propõe a estimular revoltas populares. O que está no centro das críticas feitas pelo filme é o quanto nós estamos propensos, em momentos de grande descontentamento, a aceitar soluções fáceis, mesmo as violentas, e a seguir gente claramente louca, que diz aquelas coisas que achamos que queremos ou precisamos ouvir. Se parece familiar, é porque é. Durma com essa.
A única expectativa correspondida pelo filme é a atuação perfeita de Joaquin Phoenix. Numa leitura completamente nova do personagem para as telas, o Coringa de Phoenix respeita o amor pelo caos puro e simples que caracteriza o vilão desde sempre. Quando seus crimes são entendidos como atos políticos, o Coringa rejeita a condição de messias de qualquer coisa, abraçando o gosto pela morte e encontrando sua identidade (destroçada ao longo do filme) naquilo que sabe fazer melhor: despertando o medo e tocando fogo no circo. Aos “normais”, restaria apenas correr pra se salvar, mas, em vez disso… Assista e veja, mas, prepare-se para sair do cinema perguntando-se quem é que realmente está louco.
As explosões de violência do Coringa, também, têm sido alvo de debates sobre possível exagero gráfico, mas, talvez, a gente possa simplesmente dar de ombros a toda essa gente que se deleitou durante oito temporadas do show de horrores despropositados que era Game of Thrones e, agora, tem a pachorra de cobrar “discrição”.
Não há como negar, porém: os ataques são perturbadores e, embora haja espaço para um lance de inegável humor em meio a um deles, mesmo isto se parece mais com um lance de sadismo, matando a vítima mais pela expectativa do fim do que pelo fim em si. Coisa mais “coringuesca”, impossível.
Assim, temos mais um Coringa icônico fora dos quadrinhos. Joaquin Phoenix junta-se ao seleto clube formado por Heath Ledger, Mark Hammill (voz na série animada dos anos 90), Jack Nicholson e Cesar Romero, cada um evidenciando nuances diferentes do comportamento indecifrável do maior dos vilões. Tudo isso em um filme que cheirava a desastre e, agora, torna-se uma aposta segura ao Oscar – e não apenas pelo desempenho fenomenal de seu protagonista: o roteiro, a cenografia (a Gotham mais decadente que já se viu) e a direção segura devem ser lembradas pela Academia, e não seria precipitado dizer que o filme tem boas chances de sair com o prêmio principal. Coringa é cinema em estado bruto.
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Para saber mais sobre o Coringa, leia o artigo especial de Joel Morais.