O triste caso de Maxwell Lord

Tem momentos em que a sincronicidade envolvendo a cultura pop bate pesadamente, fica impossível não notar tantos pontos se interligando. Para quem acompanha e gosta dos personagens e conceitos da ficção, uma menção ali e um comentário acolá merecem, não, melhor dizendo, EXIGEM algumas considerações. Daí surgem textos como este, que ninguém pediu ou precisa, mas que vamos jogar no mundo mesmo assim.

Alguns leitores o conhecem, fãs de séries também, agora o público da telona vai saber quem é o cidadão Maxwell Lord. Ou não. Pois, apesar do nome, esse personagem guarda pouca ou nenhuma fidelidade ao original, criado em 1987 para o relançamento da Liga da Justiça. Se você comprou ou se está pensando em comprar Lendas do Universo DC: Liga da Justiça, recém lançado pela Panini, terá uma ideia do que estamos falando aqui. J.M. DeMatteis, Keith Giffen e Kevin Maguire criaram um personagem, de certa forma, paradoxal para os padrões dos gibis de super-heróis. Max Lord era misterioso, mas não usava máscaras nem codinomes. Tinha poder, mas de um tipo que poucas vezes era usado por alguém que não fosse vilão: o dinheiro. E só fez coisas boas para a Liga, embora usasse de métodos não-tão-heroicos para isso.

Max foi apresentado como um executivo montado na grana e no poder conferidos por sua mega-corporação (embora nunca ficasse realmente claro qual apito ele tocava no mundo empresarial) e que aparentemente via na nova Liga da Justiça mais um instrumento de poder no cenário geopolítico global. Aos poucos, foi revelado que o interesse de Lord nos heróis era outro. Todo o sucesso que ele havia adquirido no mundo empresarial, na verdade, era resultado de seu envolvimento com um inteligência artificial vinda de Nova Gênese, lar dos Novos Deuses. A tal entidade eletrônica havia desenvolvido vontades próprias e estabeleceu com Max uma relação mutuamente benéfica, mas que logo tornou-se opressiva para o empresário. Ele era um escravo da máquina. Daí o seu interesse na Liga: ele pretendia manipular os heróis para que enfrentassem e destruíssem a I.A., algo que aconteceu, mas de outra forma, quando o verdadeiro dono da máquina apareceu, o novo deus Metron.

Livre da influência da máquina, Lord tornou-se mais que um aliado, passou a ser integrante da agora Liga da Justiça Internacional (um status junto à ONU que foi alcançado graças a ele) e, mais importante, superou todas as desconfianças criadas por ele mesmo, firmando amizade cada vez mais sólida com os heróis.

Mesmo descontando todo o clima leve da série daí em diante, até chegar ao final da fase, Lord sempre foi mostrado como um cara normal, que não era nada heroico, mas que se esforçava para ter alguma decência em suas atitudes. Falhava aqui e acolá, o que fazia dele apenas humano, no final das contas. Sim, eventualmente inventaram de dar poder super-humano para o sujeito, como uma consequência da saga Invasão! e a da detonação da Bomba Genética. Max ganhou um poder telepático de persuasão, que serviu pra algumas boas sacadas, como na história em que ele, a Caçadora, a Gelo e Oberon estavam prestes a morrer afogados, boiando em um bloco de gelo em alto mar. Quando a Caçadora descobre que ele usou seu poder pra induzi-la a entrar na Liga, a mulher quase o mata sufocado, ao que ele reagiu usando novamente o poder mental e fazendo com que ela esquecesse tudo. Mas ele ficou mal com isso, não era algo que o caracteriza-se como um vilão gargalhante.

História vai, história vem, Max acabou sendo dominado por outra entidade mal-intencionada. O vilão Dreamslayer, no Brasil traduzido como Pesadelo, uma versão da DC para o Nightmare/Pesadelo da Marvel (os tradutores da Abril quando acertavam, acertavam LINDO), ocupou a mente de Max e por pouco não destruiu a Liga inteira. OK, foi exorcizado.

Acabou a fase Giffen/DeMatteis, veio Dan Jurgens, depois Dan Vado, Gerard Jones e aí uma das fases mais medonhas da Liga da Justiça. E que, felizmente, nunca desperdiçou celulose nem desonrou o sacrifício de árvores no Brasil para ser imprimida. Desse período seboso, precisamos destacar outra possessão de Max Lord. Pegaram um vilão obscuro do comecinho da mensal do Flash (Wally West), uma inteligência artificial chamada Kilg%re, que no Brasil ficou como Simbi%nte (é, nem sempre a Abril acertava) e jogaram não apenas nos miolos, mas no corpo todo de Max. Ossos e órgãos internos dele foram substituídos por tecnologia, agora Lord era um ciborgue sob o comando de Kilg%re. Como isso foi resolvido? E eu sei? Vai tu ler aquele bagulho. Até leitor véio securento tem limites, rapá!

Bom, alguns anos depois, Max reapareceu em um arco saudosista e simpático na revista JLA Classified, com Giffen, DeMatteis e Maguire, citando mas deixando para lá o lance de ser um ciborgue. Aqui no Brasil saiu como uma mini em 3 partes pela Panini, Já Fomos a Liga da Justiça. Nessa mesma época, começou o ponto de ruptura. E foi onde surgiu o Max Lord que, agora, está sendo popularizado nas séries e, em breve, nos cinemas.

Todo esse nosso arrodeio, contando a saga de Max Lord nos gibis, não foi à toa. Serviu pra mostrar que o original está morto, desde o tempo em que Dan Didio e Geoff Johns vieram com sua versão insana. Esse que vocês vêem agora, é uma versão que está mais para outro personagem, usando apenas nome e poder mental do que conhecemos em 1987. Em 2005, Didio e Johns deflagravam uma das melhores sagas da DC Comics, a Crise Infinita. Mas pra isso, precisavam de uma faísca para tocar fogo em tudo. Precisavam de uma figura conhecida, que estivesse envolvida com os super-heróis e que se revelaria um traidor, um sociopata, um assassino frio. Aí escolheram Max Lord. Entendeu agora o problema? Não foi apenas o fato de terem vilanizado o sujeito. Foi como fizeram.

Simplesmente decidiram que a solução era retconear Max como alguém que sempre odiou super-humanos, que se infiltrou na Liga, que teria até mantido o grupo em situações ridículas e cômicas para que perdessem a credibilidade (?!?), para assim poder juntar poder na baixa e implementar um ataque pesado contra todos. Olha, podiam ter feito isso ao menos usando a história pregressa do personagem. Qualquer um dos três vilões que o dominaram no relato acima e que, sei lá, tivessem deixado algum vestígio que ou causou danos mentais ou permitissem o retorno de um deles ao comando ou abrisse uma brecha pra que um novo vilão o dominasse ou… Capisce? Se um leitor consegue pensar nessas besteiras todas aí, por conta de quê o editorial ou o roteirista escolheram o caminho mais incoerente?

Max NUNCA foi um sociopata. Essa foi a decisão mais preguiçosa e cretina possível. Enfim.

Depois de tudo dito e feito, eventualmente mataram Max Lord, ou melhor, botaram a Mulher-Maravilha para quebrar o pescoço do infeliz e uns 3 anos depois tivemos um uso ao menos bem sacado para o cérebro dele, em Crise Final, quando juntaram os miolos do finado com o conceito do Irmão Olho criado por Jack Kirby e eis que surge o Lorde Olho, mas tudo bem, admitimos que Lord Eye soa melhor. Muita coisa fica melhor no original, fato da vida.

Em A Noite Mais Densa, Max voltou à vida e deu trabalho para todo mundo de novo no gibi semanal Justice League: Generation Lost, um surpreendentemente bom trabalho feito por Judd Winick. Depois disso virou arroz de festa, foi reapresentado novamente nos Novos 52, mas ainda com a persona sociopata e logo migrou para outra mídia. Na série da Supergirl, o ator Peter Facinelli deu rosto ao nome, interpretando um empresário e inventor com um misto de revolta e mau caratismo, sendo um genérico de Lex Luthor para prima do Superman. Nada memorável, mas que foi coerente com a versão em voga desde a Crise Infinita nos gibis.

Eis que agora, em 2019, a diretora Patty Jenkins, uma das responsáveis pelo sucesso do filme Mulher-Maravilha, estrelado por Gal Gadot, anunciou que teremos uma versão de Maxwell Lord nos cinemas. E será um vilão.

Para quem viu a onomatopeia “KRK” no quadrinho em que Diana quebrou o pescoço de Max, foi impossível não prever que teremos um barulho parecido no filme vindouro. Mas como isso de quebrar pescoço de bandido é algo que talvez tenha ficado de vez na sombria fase Zack Snyder nos filmes DC, talvez não tenhamos isso agora. Quem sabe, né?

De toda forma, com sua habitual diplomacia, o roteirista J.M. DeMatteis se posicionou no Twitter sobre toda essa bagunça envolvendo seu personagem. Primeiro, diante de um tweet que descrevia Max como um vilão no segundo filme da Mulher-Maravilha, ele respondeu: “Não pra mim”. Isso chamou atenção, deu início à um longo debate entre seus seguidores e, para encerrar a questão, DeMatteis concluiu: “Estão me perguntando se fiquei perturbado quando fizeram de Max um vilão. Sim e Não. Sim, pois isso não bate com nossa visão do personagem. Não, pois é assim que funcionam os quadrinhos.” Há alguns anos, Giffen resumiu ainda melhor a questão, dizendo que o personagem é da DC, não de seus criadores, portanto não faz sentido espernear por isso.

Moral da história: para nós, os leitores que conheceram o Max Lord original, basta pegar um exemplar de Lendas do Universo DC: Liga da Justiça ou os formatinhos dos tempos da Abril. Ele sempre estará lá. E pra quem só o conhece como um assassino sociopata que odeia super-heróis, bem, sempre estaremos aqui à disposição para falar sobre um personagem que, se não era um herói, ao menos estava do lado certo.


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