Um ano da morte de Stan Lee…

Arte, ilusão, sobrevivência e uma sorte fora das escalas. Com esses quatro elementos, talvez seja possível explicar a ideia viva que se tornou Stan Lee. Para os leitores veteranos de quadrinhos, imaginar que o nome de Lee estaria um dia no topo das citações das redes sociais, ainda mais relembrando um ano de seu falecimento, seria uma impossibilidade. Mas, eis que na manhã deste dia 12 de novembro, a internet foi tomada por homenagens e declarações de respeito ao roteirista que soube ser bem mais que um escritor. A maior prova disso está na grande maioria dos que o homenageiam hoje. Sem medo de errar, podemos afirmar que essa mesma maioria jamais leu uma só história em quadrinhos escrita por Stan. Ainda assim…

Claro, o sucesso da Marvel nos cinemas e as tradicionais aparições do roteirista justificam e explicam totalmente esse reconhecimento por parte dos internautas, um carinho genuíno por alguém que todos consideram O criador não apenas dos personagens, mas de todo um universo fictício que conquistou fãs por todo o mundo. É mais do que algo admirável, é uma façanha e um atestado de que ele soube como poucos usar sua arte e, claro, a dos outros. Não vamos entrar no mérito da honestidade ou falta dela na carreira de Stan. É um tema que vai e volta e não se esclarece, até mesmo encontra resistência naqueles que sentem carinho por ele. O que não se pode negar é que o tino comercial, o senso de oportunidades (e oportunismo), somados a uma malandragem pública e de bastidores, garantiu sucesso e renome a ele. Embora tenha começado a trabalhar com personagens de quadrinhos em 1940, foi somente em 1961 que ele se tornou O Stan Lee como o conhecemos hoje. Mas, como ele mesmo sempre afirmou, esse sucesso não começou como uma glamourosa vitória da arte, como as multidões que o idolatram hoje por causa dos filmes imaginam.

O primeiro grande êxito de Stan foi o Quarteto Fantástico, publicado em agosto (mas com data de novembro na capa, uma coincidência bem gibizesca se considerarmos o mês em que Stan morreria) de 1961, uma criação motivada pelo fracasso financeiro da editora na qual trabalhava (na época, recém renomeada de Atlas para Marvel Comics) e pelo sucesso de uma outra superequipe, a Liga da Justiça da América, na editora concorrente. Essa história é amplamente conhecida, com vários ângulos e versões, basicamente narrando como o chefão da Marvel e tio de Stan, Martin Goodman, tentou se recuperar da pindaíba pegando carona no sucesso da LJA, encarregando seu sobrinho da tarefa nada artística de imitar a fórmula da equipe de super-heróis. Ao invés de seguir ao pé da letra, Stan (aconselhado por sua esposa, Joan) teria criado um conceito no qual a equipe seria mais interessante do que o aspecto super. Personalidades não tão unidimensionais e certinhas como as de Superman, Mulher-Maravilha e amigos. O que não deixa de ser imensamente simbólico, considerando tudo que aconteceu desde então envolvendo Stan Lee, os super-heróis Marvel e todos que estiveram entre eles, com ele e ao redor deles.

A motivação de Stan não foi uma inspiração pura e bela ou um manifesto político nem nada do tipo. O camarada estava preocupado em garantir a feira, copiou parcialmente a tendência de sucesso da época e o grande diferencial que acabou jogando seus personagens em órbita (na cultura pop, nas vendas de revistas e, claro, na própria origem dos poderes do Quarteto) foi a imperfeição de caráter. Deles e dele.

Da ansiedade vaidosa e imprudente de Reed Richards, passando pela arrogância de Thor Odinson e de Stephen Strange, a irresponsabilidade de Peter Parker, a inconsequência de Bruce Banner ou Tony Stark, cada falha ou defeito ou pecado cometido pelos heróis Marvel conquistava os leitores pelo que vinha a seguir: a tentativa de redenção. E mesmo depois, quando todos já estavam em processo de se redimir, mantinham relações e comportamentos totalmente diferentes dos heróis da DC, afinal, nenhum deles discutia, brigava ou perdia tempo com futilidades da forma como Ben Grimm e Johnny Storm, Steve Rogers e Clint Barton, Janet Van Dyne e Hank Pym faziam rotineiramente. Mas sabem quem fazia isso, no dia a dia? Os leitores. Ou as pessoas com quem eles conviviam. As pequenas falhas morais ou comportamentais na Marvel pós-Stan Lee refletiam o mundo real, gerando identificação. E, por sua vez, consciente ou inconscientemente, o próprio Lee estivesse refletindo nos personagens as suas próprias falhas.

Claro, querer julgar sem ter participado é muito fácil. Mas parte da fama de Lee, nas décadas seguintes, foi feita sobre as críticas e denúncias de alguns de seus colaboradores. O mais emblemático deles, o co-criador do Quarteto e de muitos outros heróis da época. Jack Kirby não poupava acusações contra Lee, descrevendo-o como alguém que explorou e se apropriou do trabalho dos desenhistas. O fato é que Stan soube utilizar como poucos a visibilidade alcançada, se colocou em risco calculado nos momentos certos, aproveitando-se de mudanças sócio-culturais dos anos 1960, construiu para si uma imagem beirando o ficcional e, como resultado, atingiu aquele patamar que poucos alcançam, onde as regras de certo e errado não são as mesmas usadas para julgar os anônimos ou os não tão célebres. Ele co-criou, mas se apropriou sozinho de um universo ficcional inteiro e refugiando-se nele desde então. O que é inegável, também, é o quanto de arte ele injetou em uma mídia e gênero tradicionalmente comerciais. Se a produção em massa, os apelos fáceis e tudo mais que caracteriza os gibis como um produto industrializado sempre estiveram presentes, aqui e ali, em certas histórias ou sagas, havia ao menos a pretensão de ser artístico, com referências, citações ou mesmo qualidades admiráveis para revistas concebidas para crianças e pre adolescentes. Lee entendeu e usou plenamente a ilusão como uma arte. Distraia com uma mão e realizava o truque com a outra. Assim, iludiu e venceu o fracasso, o desespero da frustração que quase o levou a abandonar os quadrinhos. Mas para isso, acabou não dividindo o palco com mais ninguém.

O começo do século XXI não pertencia mais ao sujeito que ajudou a popularizar os personagens Marvel. Na verdade, ele não apitava mais nada nem na própria editora. De forma inconstante, seus conceitos apareciam e sumiam de outras mídias, como a TV e o cinema. Até 2008. O filme Homem de Ferro deu início a um dos fenômenos pop mais lucrativos e amplos já vistos. E dez anos depois, com bilhões nas bilheterias, mais de duas dezenas de filmes estrelados pelos mesmos personagens que fizeram seu sucesso nos anos 1960, Stan Lee ressurgiu para os que o conheciam e foi apresentado para toda uma nova geração.

Com suas aparições bem humoradas, seu inegável carisma e uma admirável recepção por parte do público, Stan conseguiu, pela segunda vez, se tornar uma figura maior do que ele mesmo. Tanto é que, a exemplo de seus heróis e vilões que conseguem escapar ou voltar da morte, sempre se tornando ainda mais intensos e populares, o velhote conseguiu a façanha de estar “vivo” nas mentes de milhões, um ano depois de sua morte, recebendo todo tipo de elogio, homenagem e agradecimento na rede mundial de computadores, (inclusive, nunca é demais ressaltar), de pessoas que nunca leram um gibi sequer escrito por ele.

Bem humorado, inspirado, oportunista, criativo, sortudo. Stan Lee foi isso e muito mais. E, desde 2018, fez mais uma das suas, tapeou a própria morte, deixando de ser um mero mortal e assumindo uma forma bem mais adequada para quem ajudou a construir a Casa das Ideias. Stan Lee hoje é, ele mesmo, uma ideia viva.


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