10 Anos de Cavaleiro das Trevas: “Porque ele não é um Herói”

Não é fácil ser fã de alguém como o Batman, bem menos estar numa posição desprivilegiada, suscetível aos caprichos de uma corporação que, com raríssimas exceções, nunca soube dar o devido valor a uma mitologia tão cativante quanto a que se construiu ao longo dos anos. Mito esse construído com sangue e lágrimas, trancos e barrancos. Durante sua vida inteira, o leitor procura respostas para aquele “continua” sem fim ou o “fim” que nunca é um fim; explicações que lhe fizesse entender esse verdadeiro e incompreensível amor abstrato que nutre por algo tão abstrato quanto um personagem de histórias em quadrinhos. Uma relação infalível, passível de erros e acertos, esculpida por somas significativas de dinheiro, muita paciência e rompantes de êxtase à conta-gotas.

Dez anos depois, Batman: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), de Christopher Nolan, ainda ressoa impecável como a recompensa de uma vida inteira de devoção. Exagero? Seria a réplica que tanto buscamos na mídia impressa, televisiva e, claro, nas películas anteriores e posteriores? Creio que naquela sexta-feira de 18 de julho em 2008, estávamos  prestes a testemunhar a mesma urgência revolucionária que a minissérie homônima de Frank Miller, só que numa sala de cinema, sendo perpassados pelo sonho de ver uma adaptação de quadrinhos ganhar os holofotes entre os grandes nomes do cinema daquele ano, talvez de todos os anos, como um clássico tal qual a história em quadrinhos de 1986. E sim, em vários aspectos, aquela sexta-feira rendeu e ainda rende.

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Fato. Heath Ledger passou longe de compor um personagem. O que ele fez foi recriar em nível molecular um monstro que supera todos os feitos engendrados pelo original, monstro não, estaria sendo injusto com a categoria, o Coringa ledgeriano está mais para uma força da natureza do que um vilão qualquer com meia dúzia de pretensões maiores que o nariz. Um instrumento do caos, o nêmese perfeito, o polo que anula o positivo de seu arqui-inimigo.

A construção do personagem fugiu a maquiagem e os cacoetes de praxe, não o Coringa que já conhecemos, ali está “O” Coringa. A propósito, perto desse, todas as outras versões do palhaço do crime parecem manifestações apócrifas. Um Coringa factível, gênio, com domínio completo das faculdades mentais, capaz de forjar insanidade balizando-a na via do autocontrole. Capaz de adaptar o jogo ao bel prazer, transformando as peças de um tabuleiro (autoridades, população, quadrilhas e um vigilante) em peões manipuláveis, posicionando-os em situações limítrofes. E que situações, com uma tacada só, enquanto brevemente encarcerado, conseguiu ficar cara a cara com o Batman e desestabilizá-lo; desviou a atenção de todos, colocando Rachel e Harvey onde queria que estivessem e – pasmem! – fugiu mandando praticamente todo o DPGC pelos ares.

Aliás, a cena me parece uma releitura magnífica do ocorrido no arco “Alvos Fáceis“, ocasião em que o Coringa deixou-se capturar e se portou exatamente como o seu intérprete no filme.

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Passagem de Pecados Originais, história escrita por Neil Gaiman, presente no Superalmanaque #1 da Abril e recentemente republicada em Origens Secretas: Os Maiores Vilões de Gotham da Panini.

Por vezes me flagrei divagando sobre o quão oportuno seria atacar com alguma regularidade o cotidiano incomum das massas gothamitas. As experiências do dono de bar que se habituou aos vultos sombrios que esporadicamente arremessam clientes pelas vidraças; o relato da garçonete que escapou ilesa de uma investida de Victor Zsasz, sem qualquer ajuda; os temores dos três enfermeiros que se revezam semanalmente para entrar na cela acolchoada do Coringa e realizar seu trabalho, provendo-o com a alimentação e aquela ajudinha básica nas necessidades fisiológicas.

Enfim, um mundo em que Batman existe, mas não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Nos quadrinhos, cenários como os do antológico Superalmanaque DC #1 (1990) e Noites de Gotham (1994), não deveriam ser exceções. Na minha ótica, o melhor do longa-metragem reside justamente na primazia em deixar os anseios do protagonista um pouco de lado e apostar com sobriedade na figuração e nos coadjuvantes, conferindo voz e rosto aos protegidos do morcego.

E não são poucos os seguimentos que propõem igual silogismo, seja nos justiceiros improvisados (entusiastas da cruzada de Batman), ou no funcionário espertalhão que somou um mais um e descobriu que Bruce Wayne não passa de um bon vivant de fachada, ou, quem sabe, na eventualidade das barcasque, diga-se de passagem, abre uma janela enorme para os cidadãos que não creem na existência de um guardião sombrio.

Nada é gratuito. Nada se perde ou deixa de ser abordado (ou subentendido). Todo o elenco de suporte dança conforme a música do roteiro, roteiro esse em stricto senso, embasado em minúcias que denotam até que ponto a produção foi para torná-lo crível a partir do incrível¹. Isso fica bem claro no arco da China que, em vez de facilitarem as coisas com uma aeronave personalizada cruzando o globo, o que se sucedeu foi uma preparação logística impecável, providenciando-se álibi, engenhocas e rota de fuga.

Falando em fuga, por essa eu não esperava. O veículo pra macho mais desejado da década teve que autodestruir-se para dar lugar ao Pod, um módulo de fuga à moda Akira.

¹ Exemplos(a) ↔ Alfred sugere que nem mesmo Bruce conhece inteiramente seu passado. Isso fica implícito quando o mordomo narra a história dos diamantes, provavelmente remetendo-se ao período em que trabalhou para o serviço secreto britânico ↔ (b) ↔ a origem do Coringa é nebulosa como tem que ser, mas o monólogo que finaliza a cena do roubo ao banco parece ser um vislumbre da verdade que conhecemos ↔ (c) ↔ a ausência da caverna é justificada nos últimos minutos de Batman Begins, com a melhoria dos alicerces no canto sudeste, algo que de certa forma tangencia com a decisão de deixar a mansão no fim da década de sessenta ↔ (d) ↔ o pacto de justiça² é reeditado de maneira tal que o êxito da trindade vem em dose cavalar, digo, 546 prisões ↔ (e) ↔ o recurso do sonar digital nos 30 milhões de telefones celulares em Gotham guarda algumas similaridades com o Irmão Olho do Projeto OMAC, mesmo que longe das vias do fato, mas que guarda, guarda.

² Quebrado, precisamente no hospital, quando vemos um Harvey Dent de perfil pedindo a Jim Gordon que o relembre daquele velho apelido. O “Harvey Duas Caras” que se seguiu, fez com que o promotor revela-se a face desfigurada oculta. O que veio depois foi uma baforada criogênica em sete vértebras cervicais.

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Ainda que mantivesse contato diário com a escória, Bruce conseguiu vencer parte da escalada conservando-se íntegro, jogando extraoficialmente com o sistema. A necessidade de “um Batman” parecia provisória, visto que os objetivos iniciais estavam se consolidando e um substituto à altura (Dent) começava a engatinhar. O surgimento do Coringa não é apenas frustrante, não, mais que isso, ele vai de encontro com todos os seus princípios e o faz despertar para a longevidade da missão. Pior, ao passo que a guerra ao crime provocava uma queda vertiginosa na criminalidade urbana, ela também parecia semear uma laia mais extrema de criminosos. Vencê-la³ implicaria em decisões que o colocariam definitivamente em uma estrada sem volta.

Ventilar a possibilidade de incorrer no sexto mandamento bíblico seria apenas o menor dos problemas, a tentação que facilitaria as coisas, que o atormentaria crise após crise. Algo que por sinal se tornaria um círculo vicioso degradante e inevitável.

³ Será mesmo que houve uma vitória? Tantas perdas. Tanta destruição. Tantos valores deixados pra trás? Será?

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A explanação do então Comissário ao filho pequeno sobre o que o seu salvador estaria predestinado a se tornar daquele dia em diante, é de longe a maior declaração de amor já prestada ao personagem. Chegávamos ao clímax de imperceptíveis 152 minutos de projeção, as palavras de Jim não paravam de ecoar no meu subconsciente e lá estava ele, um pária, um roadwarrior maltrapilho, sem rumo, sem destino, só trevas, imerso em trevas.

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