Justiça Seja Feita: Aquaman – Sub Diego

Lembra daquela época em que Aquaman tornou-se “rei” de um pedaço dos Estados Unidos? Quando milhares de pessoas passaram a respirar debaixo d’água? E da nova Aquagirl, descendente de latinos? Não? Pois é. Teve isso e muito mais, durante uma fase do Rei dos Sete Mares injustamente subestimada. E aqui, no Brasil, esse material continua inédito.

O ano era 2004, a DC Comics estava em uma transição que culminaria em Crise Infinita e no resgate de conceitos pré-Crise nas Infinitas Terras, só que antes disso, Aquaman teve uma sequência de histórias onde seguia um novo rumo sem ser descaracterizado. E olha que, analisando sua cronologia, mudanças foram uma constante em suas histórias…

 

O MESMO, SEMPRE MUDANDO

Bem antes de se tornarem um recurso recorrente pra alavancar vendas, as mudanças de status quo já aconteciam com Arthur Curry em um tempo que nem se pensava muito nisso. Em 1964, quando a DC Comics ainda tinha toda uma aura infantil por conta da Era de Prata, Aquaman e Mera se casaram, algo praticamente inédito para personagens mainstream, chegando inclusive à frente de Reed e Sue Richards na Marvel, que casariam no ano seguinte. E, sim, Aquaman fazia parte do primeiro time, seja por ter garantido presença nos quadrinhos, mesmo durante o período em que a maioria dos super-heróis tinha sumido nos anos 1950, seja por fundar e integrar a Liga da Justiça da América.

Já em 1974, em uma série de histórias que começou em back-ups de Adventure Comics e conseguiu promover o relançamento da mensal do personagem, uma tragédia revirou a vida do Rei da Atlântida. O primogênito de Aquaman e Mera, Arthur Curry Junior, morreu em decorrência de um plano do vilão Arraia Negra. Entre os anos 1980 e 90, ocorreram mudanças menores, como a curta fase do uniforme azul, a nova origem pós-Crise em que se deu mais destaque à figura de Atlana, mãe atlante de Aquaman, até a chegada de Peter David aos roteiros, que resgatou e explorou mais as origens ancestrais e místicas da Atlântida. Mais do que isso, trouxe uma identidade visual sem precedentes e uma atitude mais agressiva ao personagem. Foi a era do Aquaman barbado e com um gancho no lugar da mão esquerda (depois ele usaria uma mão cibernética, o que até demorou).

Já no final dos anos 90, Aquaman precisava de outra reviravolta e, dessa vez, aconteceu em uma megassaga, “Mundos em Guerra”, na qual o herói aparentemente morre combatendo as forças de Imperiex. Eis que na mensal da Liga, Joe Kelly foi encarregado de trazê-lo de volta, no arco “Era Obsidiana”. Ao final, ele retornou apenas para ser preso e julgado pelos próprios atlantes, sendo sentenciado à morte. Em sua nova mensal, o herói escapa da condenação ao receber ajuda de uma entidade mística, uma Dama do Lago. Aí acontece mais uma mudança. No lugar do gancho ou da prótese cibernética, Arthur Curry ganhou uma mão de ÁGUA mística. E é aí que tudo se encaminha pra nossa saga em questão…

 

BEM VINDO À SUB DIEGO

Com o arco em seis partes “American Tidal” (“Maré Americana”, em tradução livre), Will Pfeifer e Patrick Gleason acertaram em cheio. O conceito foi genialmente simples, ainda que utilizasse quase todos os clichês. A história começa logo após um evento cataclísmico. Metade da cidade costeira de San Diego, na Califórnia, afunda no oceano e cerca de 400 mil pessoas são arrastadas para as águas. O cenário é tenebroso, com o leito oceânico coberto por destroços de edificações, veículos e corpos de humanos e até mesmo animais do famoso zoológico da cidade. Aquaman aparece desolado, vasculhando as ruínas e, logo depois, segue até as equipes de emergência que tentam salvar feridos em terra firme. Ele informa a todos que não há sobreviventes sob as águas e vai embora.

O então presidente dos EUA no Universo DC, Peter Ross (sim, aquele amigo de infância de Clark Kent, que nessa época tinha sido vice do Presidente Luthor, assumindo após seu afastamento. Eram tempos no mínimo interessantes) dirigiu-se à nação para declarar oficialmente as mortes dos milhares que afundaram com parte da cidade, além de deixar claro que a tragédia ainda não tinha uma causa determinada. Não havia indícios de atentado terrorista nem ação meta-humana. Um mistério em meio ao luto.

Eis que acontece a primeira reviravolta. Semanas depois, um garoto de nove anos surge do mar, é socorrido e levado para um hospital, onde já chega morto. No hospital onde o corpo se encontra tem início uma autópsia, para a qual Aquaman é chamado a participar. O garoto aparenta ferimentos condizentes com um longo período sob a água salgada do mar, seu estômago tem pedaços de peixe semi-digeridos e, por fim, Aquaman e os médicos encontram GUELRAS no pescoço do menino. A conclusão é óbvia. Ele estava vivo e respirando sob as águas, mas ao sair e buscar terra firme, morreu como qualquer ser aquático morreria. Sufocado pelo ar.

Durante toda essa edição, Pfeifer consegue conduzir a trama com maestria. É uma história pesada, cataclísmica e humana ao mesmo tempo, carregada de suspense enlaçado com ficção científica. E horror, em menor escala, permeando o que todos estão vivenciando diante da tragédia. A arte de Gleason é competente na maior parte do tempo e, em alguns poucos momentos, admirável. A história em si, é irretocável.

Já na segunda edição, outra sobrevivente surge do mar e, para salvá-la da morte, a LJA é envolvida. Aquaman tem mais destaque ao vermos sua frustração não apenas com a situação, mas, também, com discordâncias em relação à decisão da Liga quanto à sua base de operações (na Lua e não na Terra) e, no decorrer da história, J’onn J’onzz, o Caçador de Marte, estabelece um elo psíquico entre Arthur e a sobrevivente, chamada Lorena. Surpreendentemente, eles descobrem que inúmeros sobreviventes estão presos aos destroços de San Diego, respirando sob as águas.

Na terceira edição, começa um esforço de resgate, no qual Arthur planeja e executa toda uma estratégia de comunicação e contenção, antes de iniciar a retirada dos escombros que prendem os sobreviventes. Afinal, eles não podem mais respirar acima das águas. O roteirista caracteriza Arthur da forma mais coerente, não apenas como um super herói socorrendo pessoas, mas sim como um autoridade exercendo controle sobre uma multidão desorientada. Recorrendo, inclusive, a tubarões para intimidar e desmotivar sobreviventes a qualquer tentativa de ir até a superfície. Ele acredita que sabe o que é melhor para a maioria. Ou seja, o sujeito é um rei.

Voluntários e serviços especiais de socorro chegam aos destroços e dão início ao atendimento dos feridos. Lorena desperta na Torre de Vigilância da LJA e pede à J’onn que a envie até o local. Ela passa a ajudar Arthur e os outros. É a primeira indicação de que a personagem teria a atitude certa para ganhar destaque na série. No final da edição, Arthur e Lorena são levados por um golfinho até uma estrutura tecnológica abandonada e, em seu interior, encontram uma criatura aquática bizarra.

No quarto capítulo, o mistério se intensifica. A tal criatura tem implantes cibernéticos funcionando como câmeras e, vendo através delas, estão figuras em uma sala de reuniões, assistindo a tudo e discutindo o desenrolar dos eventos. São os causadores da destruição de San Diego. Rapidamente, eles induzem a criatura a eliminar Arthur e Lorena, o que se mostra mais difícil do que pensaram. Aquaman literalmente desfaz a criatura e, a seguir, acessa suas memórias, localizando um dos envolvidos no cataclismo.

O mistério é revelado quase por inteiro na quinta edição. Aquaman vai até o cientista responsável pela transformação dos moradores em seres submarinos. Lorena perde o controle e quase mata o homem identificado como Anton Geist, não fosse pela interferência de Arthur. O cientista explica que introduziu uma fórmula mutagênica no suprimento de água de San Diego durante um longo tempo, como uma forma de dar início ao que julgava ser um plano para salvar a humanidade. Ele não tolerava a ideia de que a vida humana na Terra poderia acabar um dia, com o inevitável processo de degelo dos pólos e o aumento dos níveis dos mares, capaz de cobrir o planeta completamente. Assim, buscou uma forma de transformar humanos respiradores de ar em respiradores de água. Com o “empurrão” certo…

Aí o mistério continuou. Geist apenas criou e administrou a fórmula no reservatório de água da cidade. Não foi ele quem causou o evento devastador que lançou meia cidade no mar. Quem financiou a pesquisa de Geist e instalou a máquina causadora do terremoto? O próprio cientista afirmou nunca ter encontrado com eles, recebendo ordens e recurso através apenas de mensageiros. O tal grupo poderia ser uma corporação ou sindicato, até mesmo um setor renegado de algum governo. Ou seja, mais um clichê dos bons, os manipuladores nas sombras.

Ah… Outro ponto foi esclarecido. E aí o caldo engrossou. A fórmula foi criada a partir de uma amostra genética bem singular: o DNA de Aquaman! Nesse meio tempo, enquanto Arthur perdia as estribeiras com o cientista, Lorena entra em colapso por estar há muito longe da água. O capítulo se encerra com Aquaman levando a moça de volta ao mar e arrastando Geist junto.

Na conclusão do arco inicial, Aquaman retorna ao local que passou a ser chamado de Sub Diego. Lorena se recupera totalmente e Geist encara o resultado de suas ações, ainda que indiretamente. Feridos e mortos espalhados por quarteirões submersos. E, de repente, ao lembrar de um procedimento cirúrgico a que se submeteu por ordem de seus financiadores misteriosos, se dá conta de que tem um implante alojado no sistema nervoso. Pfeifer surpreende nesse momento, utilizando a tal mão de água mística de Arthur para fazer UMA NEUROCIRURGIA. A seguir, joga o cientista na superfície em um bote, onde o camarada corta os próprios pulsos e acaba sendo devorado por tubarões. Não acredita? Pois os financiadores do cara acreditaram, ao ver tudo ao vivo por imagens de satélites. Só que tudo foi um plano sacana do Aquaman pra tirar os bandidos do rastro do cientista. Ele controlou os tubarões e tudo não passou de encenação. Geist estava vivo e iria “cumprir pena” vivendo em Sub Diego para ajudar a população.

Ao final da edição, vemos os primeiros sinais de cooperação da vida marinha com os humanos, sob ordens de Aquaman. Lorena passa a cuidar das pessoas e agir contra os primeiros criminosos do local, preparando terreno pra sua estréia como Aquagirl. E Arthur reconhece a necessidade de assumir a responsabilidade pelo povo de Sub Diego.

Surpreendentemente, Pfeifer e Gleason ficariam na série por apenas mais duas edições e, pelo que mostraram nelas, poderiam ter ficado bem mais. Na primeira, trataram das intrigas de bastidores do crime organizado na cidade submersa, com a chegada de um vilão de terceira, o Enguia, que enxergou uma oportunidade irresistível de tomar o comando das facções do lugar. Também vimos que as crianças nascidas em Sub Diego não necessariamente seriam respiradores de água como as mães, o que criou um drama interessante. E no âmbito político, foi mostrado o começo de um conflito entre os legisladores que ficaram em terra firme e os que passaram a viver sob o mar. Surge a possibilidade de Sub Diego tornar-se uma cidade independente de San Diego. Cada sub-trama correu em paralelo e envolvendo Aquaman de forma competente.

Na edição seguinte, vemos um bom e velho combate super-heróico, entre Arthur e o Enguia. Geist consegue desenvolver uma variação de sua fórmula, para tentar alterar a genética dos bebês que viriam a nascer em Sub Diego. E um dos tais manipuladores nas sombras decide que é hora de agir mais diretamente na situação e mostrar quem manda.

Pat Gleason permaneceu na série por várias edições. E depois de passar por Tropa dos Lanternas Verdes e outros títulos, finalmente alcançou o topo na DC, na atual fase Renascimento, desenhando a mensal Superman.

Já Will Pfeifer ficou apenas oito edições no título. O autor acabou ficando mais conhecido pelo malfadado evento “O Ataque das Amazonas”, pelo qual até pediu desculpas online, devido ao nível de ruindade da bagaça. Uma injustiça, se considerarmos o bom nível desse arco que criou o conceito de Sub Diego. Pfeifer conseguiu contar boas histórias nessas poucas edições, até mesmo usando uma variedade de gêneros com eficiência. Sua caracterização de Arthur Curry é imponente, séria e sobretudo com um pé no super-heroísmo e outro na liderança natural. Sem precisar recorrer a exageros ou desvirtuar o herói. Os coadjuvantes e mesmo os personagens anônimos tem bons momentos, bons diálogos e interações. O potencial das subtramas era enorme e poderia se estender por um bom tempo. Infelizmente, o autor não foi muito além.

Em seu lugar, tivemos o veterano John Ostrander e o multimídia Marc Guggenheim por algumas poucas edições, enquanto John Arcudi permaneceu por bem mais tempo, até a súbita e inconclusa conclusão da saga na edição 39.

Durante a fase seguinte, “Aquaman: Sword of Atlantis”, Kurt Busiek tentou retomar uma versão primária de Aquaman, com um jovem praticamente idêntico a Arthur em aparência e poderes, exceto que sua origem era científica, tal qual a primeira versão da Era de Ouro, em que um cientista conferia ao filho as capacidades subaquáticas, sem nenhuma conexão com a Atlântida. Foi algo meio labiríntico e que tornou-se cada vez mais complicado com a presença de um ser deformado que, eventualmente, foi revelado como sendo Arthur Curry, o Aquaman original. O motivo de estar contando isso tudo aqui, em um texto sobre Sub Diego? É que de acordo com a explicação rocambolesca pra condição de Arthur, ele teria barganhado poderes místicos altamente tunados para salvar os habitantes de Sub Diego que, mais ou menos na época da guerra do Adão Negro contra o mundo, voltaram a respirar ar e por isso precisavam urgentemente retornar à superfície. Arthur conseguiu emergir parte de Sub Diego, salvando milhares. Ainda assim, uma pequena porção da cidade e de moradores continuou vivendo sob as águas, inclusive convivendo com refugiados atlantes.

Complicado? Sim, foi. Talvez se Pfeifer tivesse continuado, as coisas fossem bem mais simples – e melhores.

 

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