Deuses Americanos

Adaptação é algo comum nos dias de hoje. O termo “transmídia” mostra que a mensagem – seja um livro, história em quadrinhos ou jogo eletrônico – está passível de migrar para outros meios de comunicação a fim de aumentar sua divulgação. É inegável que a popularidade e a divulgação por uma mídia de massa faz bem ao material original, mesmo que alguns puristas torçam o nariz a respeito disso.

Exemplos de obras que foram catapultadas para mídias maiores, saindo do seu nicho original e caindo no gosto do grande publico: Game of Thrones (dos livros para a HBO), Harry Potter (livros, cinema, parque de diversões, rede social – por enquanto) e até mesmo o MCU (Universo Cinemático Marvel) tornou os heróis coloridos dos quadrinhos em heróis coloridos do cinema.

American Gods  foi o quarto romance escrito por Neil Gaiman, com conceitos que já tinham sido explorados em Sandman. A história é uma fantasia urbana que explora a chegada dos deuses do antigo continente para a América e o confronto com Novos Deuses Modernos, como a Mídia, a Tecnologia e os Homens de Preto. O livro foi publicado em 2001 no Reino Unido e, um ou dois anos depois, aqui no Brasil, com uma indefectível capa com um raio cortado na diagonal e o título traduzido Deuses Americanos.

Só isso. Sem nenhum vislumbre de velhos e novos deuses.

Várias edições depois, com reconhecimento dos prêmios Hugo e Nebula, ambos na categoria de Melhor Romance em 2002, Deuses Americanos ganhou em 2017 duas adaptações: uma menor, em formato HQ pela Dark Horse e uma maior e mais glamourosa, dessa vez pelas quatro mãos da Amazon e o canal Starz para uma primeira temporada seriada. Compará-las é quase um combate entre Velhos Deuses impressos e Novos Deuses Full HD, que chegam até nós através do milagre do streaming, tão popular hoje em dia. 

Cuidado com leves spoilers a partir daqui.

A linha-guia foi traçada pelo mestre dos sonhos: a história de Deuses Americanos não é o melhor trabalho de Neil Gaiman (Sandman é o melhor trabalho do autor). Mas até mesmo um trabalho mediano de Gaiman é algo acima da média. Cabia aos adaptadores dar a Forma, o Ritmo e as Adequações Necessárias. Vou explicar melhor cada um deles.

A FORMA

Deuses Americanos: Shadows foi anunciado no começo de 2017 pela Dark Horse. A série já tem 4 edições publicadas e conta com roteiros de P. Craig Russell e arte de Scott Hampton, que lembra o começo do selo Vertigo. Não seria o artista que eu escolheria para dar forma ao universo de Deuses Americanos. Já pensou nessa série desenhada por J. H. Willians III? Ou o ragnarök final dos deuses com arte de Alex Ross?

Na TV, a adaptação ficou por conta de Bryan Fuller e Michael Green, além do próprio Gaiman como produtor executivo. Fuller tem a estética necessária para criar a atmosfera de Deuses Americanos, uma oscilação entre o mundano interessante e o fantástico que fica escondido em nosso cotidiano.

No quesito forma, a série de TV superou muito a arte sem brilho da HQ. Claro que ficou faltando, em minha humilde opinião, uma caracterização maior dos deuses antigos principalmente. Não precisava ser caríssimos efeitos especiais, mas adoraria ver, por exemplo, fragmentos de “Night on Bald Mountain” de fantasia passando na TV do apartamento suburbano do deus eslavo Czernobog.

O elenco da série é também um destaque: novos e velhos deuses desfilaram sua melhor forma encarnados em grandes nomes como Ian McShane (Mr. Wednesday), Emily Browning (Laura Moon), Peter Stormare (Czernobog), Orlando Jones (Anansi), Crispin Glover (Mr. World),  Gillian Anderson (Media) e fechando a temporada com as participações sensacionais de Kristin Chenoweth (Easter/Ostara)  e Jeremy Davis, o maluquinho Daniel Faraday de Lost, como um Jesus boa-praça.

RITMO

Ritmo é um problema. Cada meio, cada formato tem seu próprio “tempo”, muito diferente do formato original. A série Deuses Americanos está prevista para durar três temporadas – um exagero do nível Peter Jackson? Ainda não, mas acho que a série pecou em alguns momentos que a trama não anda.

No gibi (tenho intimidade com esse Velho Deus, posso chamá-lo assim), foram anunciados três arcos: Shadows, que está sendo publicado e os ainda inéditos My Ainsel e The Moment of the Storm. Nos dois casos, acho que a diminuição, enxugar um pouco, faria bem. Mas no quadrinhos, onde o envolvimento é maior, esse pacing pesa mais. Se ao menos as historietas das chegadas dos deuses fosse desenhada por outros autores, essa quebra no ritmo deixaria a HQ menos sonolenta.

ADEQUAÇÕES NECESSÁRIAS

Adaptações exigem ajustes na forma e no ritmo da história. Curiosamente, nas duas mídias, poucos ajustes foram feitos. Mais uma vez, a TV supera os quadrinhos ao incorporar não só as histórias das chegadas dos deuses na América (isso o quadrinho também faz), mas incluir alguns contos mais novos. O personagem Vulcan também foi uma interessante aquisição (e uma forte crítica social, diga-se de passagem) que o seriado trouxe de forma inédita.

A trama post-mortem de Laura também ganhou destaque no seriado e foi outro interessante acréscimo. Ponto para a TV.

 

Em resumo, a adaptação de Deuses Americanos para a TV parece superar a versão dos quadrinhos. Uma pena, já que histórias em quadrinhos são um meio fantástico de publicação; porém, parece sofrer de uma maldição, no caso das adaptações. Se cabe um palpite, faltou um cuidado maior na concepção de Deuses Americanos para os quadrinhos.

A impressão que tive é que o mundo onírico concebido por Neil Gaiman foi transportado a quatro cores (o padrão de impressão das HQs) para os quadrinhos e em 1080P Full HD com um adequadíssimo néon promocional para a TV. Um confronto entre Novos e Velhos Deuses, novas e velhas formas de entretenimento, novas e velhas formas de contar a velha e boa história.

Que venha mais, se for a vontade dos deuses.

 

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