
Quando o leitor compra uma revista em quadrinhos, mesmo sem se dar conta, comete uma espécie de apropriação indébita imaterial. Quer dizer, à medida que se investe tempo e dinheiro, empatia e antipatia, por um personagem, mais aquele indivíduo passa a se ver – ou entender – como o proprietário daquele Copyright. Ele sabe exatamente como aquele “ser” deve se portar, reprova qualquer reviravolta que fuja às regras estabelecidas dentro da cronologia ou, por que não, às suas próprias; enfim, indiretamente, crê que seja o ventríloquo no fechar das cortinas.
Na outra via, os super-heróis clássicos vêm tendo que se adaptar aos Millennials, assumindo multifacetas distintas das suas origens, por vezes sujeitas aos humores de um público que não são fãs forjados nas bancas, mas em seriados animados ou live-action, games e filmes. Assim, adaptações como Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Spider-Man: Homecoming, 2017) já nascem com um impasse em vista, entre os donos informais do Copyright, isto é, o leitor raiz e, perdão, um fandom Nutella. Felizmente, o contorcionismo realizado por Jon Watts em transitar entre esses coletivos não só teve sucesso, ao uni-los, como também deu conta de sacramentar a transição narrativa do aracnídeo para o MCU, iniciada em Capitão América: Guerra Civil (Captain America: Civil War, 2016).
Watts foi mais longe. Conseguiu a façanha de unir aspectos icônicos com conceitos mais modernos de outras versões do Amigão da Vizinhança, entregando um Peter Parker híbrido que, quem diria, fez sentido. Nesse ponto, méritos para a dinâmica adolescente oitentista, acertadamente inspirada nos clássicos de John Hughes, com roupagens Instagrammer ou Youtuber, mas, claro, sem sacrificar a narrativa dentro dos costumeiros exibicionismos dessas subculturas. Aliás, nesse sentido, o filme é ambíguo e tanto pode ser recebido com entusiasmo por esses usuários – caso vejam-se espelhados no protagonista –, quanto como alfinetada às suas condutas, a exemplo da passagem em que Tony Stark, representando o velho¹, diz a Peter: “Estou com dezenas de repórteres para uma coletiva de imprensa, e não aqueles blogueiros que você […]”.
¹ Eu sei, soa como um paradoxo, não é?
Se Peter Parker tivesse hoje quinze anos, ele não estaria afixando com teia sua câmera antiquada em parapeitos para tirar fotos desfocadas e vender ao editor de um jornal impresso, que por si só já é igualmente antiquado. Em 2017, provavelmente, estaria tirando selfies ou fazendo vídeos com um smartphone para publicá-los em redes sociais, o que geraria cliques e receitas para ajudar nas contas. É duro admitir, mas não estamos mais em 1962 e o que funcionava a contento no século XX, já não funciona mais. Super-heróis são os novos mitos, e mitos são frequentemente remitologizados para se adequar às linguagens e épocas em curso. Quando não se atenta para esse pequeno grande detalhe, o licenciante dá azo a leituras anacrônicas do seu Copyright e isso, a médio e longo prazo, é o mesmo que jogá-lo na lixeira.
Se o leitor raiz, lá de cima, ainda não assistiu ao filme e não consegue aceitar essa realidade, uma forma de amansar os ânimos, antes de adentrar a sala de cinema, está na leitura do arco Aranhaverso, publicado entre os números 08 e 11 na revista O Espetacular Homem-Aranha [2ª Série/Panini]. O enredo traz à tona Os Herdeiros, uma família de caçadores que se alimenta da energia vital dos Homens-Aranha do Multiverso, e para sobreviver dezenas de totens-aranha se unem para combater essa ameaça em comum, encenando uma verdadeira Crise nas Infinitas Terras aracnídea. Essa interação dos Aranhas Multiversais rende vários momentos peculiares e foi detalhada nos 7 Jagunços, mas para nos ajudar no raciocínio desse review, selecionamos o excerto abaixo:
Pavitr Prabhakar e Billy Braddock, respectivamente Aranhas Indiano [Terra 50.101] e Britânico [Terra 833], discutem se o Aranha Norte-Americano da Terra 616 é de fato o verdadeiro Homem-Aranha. Isto é, seriam eles e os demais apenas ecos ou estranhos análogos descartáveis da versão oficial daquele último. Braddock encerra a discussão com uma intrigante questão: “Quem disse que ele não é um reflexo seu?“. Logo, o Peter Parker de Jon Watts com as feições de Tom Holland é o Homem-Aranha da Terra 199.999 [MCU]. Isto é, ele pode ser tanto um reflexo desse 616 quanto esse 616 pode ser reflexo do 199.999.
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Esse amálgama de versões aracnídeas incorpora ainda as tecnologias de Homem-Aranha Superior, a secretária virtual do uniforme tecnológico desenvolvido por Stark, Karen², remete a versão holográfica, Lyla, que auxilia o Homem-Aranha no não tão mais distante ano de 2099, flerta rapidamente com o Aranha Escarlate sob patrocínio de Tony Stark. O jovem Tom Holland realmente tem a aparência de um adolescente de 15 anos – embora com, imperceptíveis, 21 na vida real – e age com um déficit de atenção à altura, muito bem representado pelas viseiras expressivas. Por sinal, um trunfo performático em relação aos filmes anteriores e, por que não, algo que acaba legitimando as variações com que as mesmas são ilustradas nos quadrinhos para sugerir emoções ou expressões faciais.
² Cuja voz é de ninguém menos que Jennifer Connely, esposa de Paul Bettany, o outrora Jarvis e, hoje em dia, o Visão.
Há que se dizer que a dita profissionalização com apetrechos Stark pode até destoar da idealização artesanal que o fandom têm sobre o fabrico wannabe daqueles gadgets, mas confesso que a única coisa que era importante para mim e que, na minha opinião, deveria ter ficado intacta, e ficou, era a invenção dos disparadores e o fluído de teia pelo próprio Peter. De resto, foi deveras divertido descobrir as aplicações da indumentária pré e pós-protocolo bicicleta de rodinhas.
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Deixando de lado as ruminações multiversais, De Volta ao Lar começa literalmente nos entulhos da Batalha de Nova Iorque [clímax do 1º Vingadores], ocasião em que o empreiteiro Adrian Toomes [Michael Keaton] consegue um contrato com a prefeitura e investe todas as suas economias na aquisição de caminhões, ferramentas e contratação de pessoal para cuidar da limpeza dos destroços. Tudo parecia transcorrer bem até que uma subsidiária da Stark Industries [a Controle de Danos], com sanção federal para executar o serviço, se interpõe e tolhe as garantias contratuais de Toomes. Cheio de dívidas e ressentido com Stark, ele vê na parafernália Chitauri esquecida em uma de suas caminhonetes a oportunidade perfeita de contornar aquele prejuízo.
Toomes segue a maldição do street fighting man dos filmes pré-MCU, do sujeito bem intencionado prestes a dar um duplo twist carpado e mergulhar no inferno. Contudo, diferente das outras ocasiões, Keaton faz toda a diferença aqui, entregando um vilão alado, mas com motivações aterradas, estritamente financeiras e atreladas a um sentido de desforra contra Tony Stark. Nesse contexto, outras figuras antagônicas vão ganhando também seus rostos, a exemplo de Shocker, Escorpião e o Consertador – esse último uma espécie de “Q” sucateiro. Nada, porém, que implique num bloco carnavalesco, funcionam apenas como ameaças periféricas e pontuais. Por outro lado, sem desmerecê-los, o filme funciona à revelia desses últimos, entregando situações corriqueiras que chegam a eclipsar as [poucas] sequências de ação non-stop, a exemplo da cena em que o protagonista passa algumas horas – ou seriam minutos? – confinado naquela caixa-forte.
Aliás, o mundano é tão presente e palpável no vídeo, que não foram poucas as vezes que me peguei imaginando a (im)possibilidade de o personagem atravessar a rua e cruzar com um veterano de guerra mal-encarado, impedir que um ladrão roubasse a Lola, comprar café no mesmo Starbuck que uma detetive particular boca suja ou, talvez, comer um sanduíche que tanto gosta com dois colegas de trabalho? Algo, portanto, bastante natural na Casa das Ideias, mas em live-action envolve problemas de logística, agenda de atores, contratos e barganhas no apagar dos holofotes. Uma pena.
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1º) O filme é um reinício, mas traz consigo uma bagagem emocional muito recente e/ou recorrente no que toca as lamúrias do personagem; logo, a opção por um caminho similar seria temerário e demasiadamente shakespeariano para o tipo de proposta Marvel Studios. Ademais, o M.O do Homem-Aranha não funciona menos se for mais leve, pelo contrário, funciona melhor porque em De Volta ao Lar, sem qualquer demérito, é de fato mais leve, e investe num super-herói que não precisa deprimir o seu público para honrar o mantra grande poder/grande responsabilidade.
2º) Não adianta negar, o Downey Jr. é o maior ativo do MCU e, de 2008 para cá, seu Tony Stark percorreu sim uma jornada heroica, atendendo, inclusive, ao pré-requito da Sintonia do Pai em Guerra Civil – vide o Capítulo 2.4, de O Herói de Mil Faces -, que o credencia em absoluto a uma função de coaching pessoal na vida de Peter. Contudo, para não dizer que senti falta do Tio Ben tomando as rédeas da psique do Peter, mesmo que só como um empurrãozinho, confesso que senti falta disso na icônica passagem de Amazing Spider-Man #33. Na outra via, sim, é uma forçação de barra dizer que a criança mascarada em Homem de Ferro 2 era o Peter, mas se conseguires deixar isso de lado por um minuto, casa que isso reforça a conotação do background fã/ídolo estabelecido em De Volta ao Lar.

3º) O elenco de apoio multiétnico só deve aborrecer os mais xiitas, embora reconheça que o fã chato dentro de mim, que cresceu à base de Casting Call³, fica bem propenso a reclamar. Na verdade, se for para reclamar, não escapa um e nem vale dizer que a essência de cada um foi mantida porque, bem, porque não foi, não foi mesmo. Basta olhar para o Ned Leeds. Lembram do Ned Leeds do Universo 616?! O Duende Macabro?! A referência correta seria o Ganke Lee do Universo 1610 e me pergunto por que cargas d’água não o nomearam assim?! Quanto a Michelle Jones ou “MJ”, será que vale o esforço?! De todos os coadjuvantes, sem sombra de dúvida, foi a mais apagada da trama e encerra sua participação aqui com um cliffhanger, na minha ótica, desnecessário.
³ Célebre seção da saudosa Wizard Magazine, que imaginava os intérpretes de filmes impossíveis.
4º) Falando em cliffhanger, o filme acaba no melhor estilo Homem de Ferro, com o gato a aranha saindo do saco e Tia May [Marisa Tomei] descobrindo na lata a natureza do estágio na Stark. Sem meio termo, a Marvel já diz a que veio e não poupa cartucho de teia, prometendo uma releitura de A Conversa, de Straczynski e Romita Jr. – publicada em Homem-Aranha #13 [1ª série/Panini] e, mais recentemente, em a Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel #22: O Espetacular Homem Aranha, Revelações & Até que as Estrelas Esfriem. Pode sair daí certas resoluções a respeito da origem do personagem e, obviamente, uma nova dinâmica com a novíssima Tia May. É também esperado para a continuação de 2019, o início do que pode vir a se tornar o Sexteto Sinistro. Falando francamente, já me contentava com uma reencenação daquela caçada, a última… Captou?

5º) Legal o Aranha de Ferro, hã?! Mal posso esperar para ver os gadgets dessa indumentária em Vingadores III; se vier acompanhada com um certo Skin furtivo ou o desenvolvimento de uma nova [velha] habilidade, melhor ainda. Sim, me refiro ao Sentido de Aranha, um dom que só ganhou, aham, “sentido” na gestão do saudoso Ezekiel; especificamente, quando chamou a atenção do Peter para as implicações precognitivas do mesmo.
Por fim, De Volta ao Lar pode não ser uma unanimidade, mas entrega um Homem-Aranha cujas desventuras impúberes divertem e, a princípio, põem o personagem em marcha. Uma coisa cada vez mais rara nos quadrinhos, que vive em marcha volver. No outro espectro, me parece que o MCU está próximo de alcançar uma unidade que só vi em outra vida, e isso só seria melhor caso a reciprocidade desse suposto Universo Compartilhado fosse efetiva, isto é, com uma completa integração entre seriados e filmes, mas como não é possível…

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