O tempo voa e nem parece que já se passou um ano desde a celebração do centenário de nascimento de Jack Kirby. A internet foi tomada por homenagens e a vasta obra do Rei analisada em detalhes (veja nosso especial AQUI). Ainda assim, sempre existe algo a se falar sobre a sua influência nos quadrinhos. E hoje, comemorando os 101 anos de seu nascimento, vamos tratar de um conceito que ganhou vida própria e se tornou uma das criações mais fascinantes de Kirby…
Com vocês, os Visões!
Ok, se você é um leitor relativamente bem informado, vai questionar a apresentação anterior. Vai dizer que apenas um Visão é criação de Jack Kirby. Você está certo. Mas não completamente. O primeiro personagem dos quadrinhos de super-heróis a se chamar O Visão surgiu na Era de Ouro. Foi criado por Joe Simon e Kirby, a mesma dupla que concebeu o Capitão América e tantos outros. E tinha todo um background para fazer jus ao seu nome. Sua aparência era pálida, fantasmagórica, um semblante que lembrava um pouco o Nosferatu do cinema expressionista alemão, além da sua marca registrada, a entrada triunfal e assustadora em meio à fumaça ou qualquer outro tipo de vapor. Suas motivações eram mais fincadas em questões “reais”, com a ambientação fantástica, claro. Ele era um policial agindo na Terra para punir criminosos. Bem, um policial interdimensional com superpoderes, vindo de uma civilização muito mais avançada. O personagem teve relativamente poucas aparições na Era de Ouro, desaparecendo em outra bruma, a dos anos 1950, que tragou incontáveis outros super-heróis. E lá permaneceu até o final dos anos 1960, quando retornou aos quadrinhos, na mensal dos Vingadores. De certa forma.
O Visão que inicialmente atacou os Vingadores sob as ordens de Ultron, para logo depois se aliar à equipe, era um personagem cuja única similaridade com o Visão da Era de Ouro seria a aparência, já que o roteirista Roy Thomas o idealizou como uma forma de vida totalmente sintética, uma inteligência artificial em um corpo simulando o organismo humano. Ou seja, além do nome e da aparência, nada a ver com Kirby, certo?
Pois é aqui onde teremos nosso ponto de discordância, leitor-relativamente-bem-informado.
Jack Kirby fez parte da Era de Prata em vários fronts. Quadrinhos de cowboys, monstros, romance e, voltando às origens, super-heróis. E em um momento de transição, quase uma Twilight Zone dos gibis, quando a editora que estava se reafirmando como a Marvel Comics publicava seus primeiros super-heróis sessentistas E ainda mantinha publicações com personagens vivendo naquele inacreditável mundo dos filmes B de ficção científica, Kirby co-criou um herói chamado Hank Pym, o cientista que encolhia ao tamanho de uma formiga. Pym eventualmente se tornou um super-herói, o Homem-Formiga. Também teve outros codinomes (saiba mais AQUI). Ele continuou fazendo suas traquinagens no laboratório. E em uma delas, foi além do que devia. Desenvolveu e ativou uma inteligência artificial que infelizmente se tornou uma ameaça para a humanidade. Pym é o “pai” de Ultron, portanto o “avô” do Visão.
E se Jack Kirby criou Hank Pym, é inegável que, sem ele, o segundo Visão não existiria. Pela segunda vez, embora por um caminho mais indireto, o Rei foi responsável pelo surgimento de um herói chamado Visão, firmando um legado que se estenderia séculos adiante no Universo Marvel. No começo do século 21, um terceiro Visão surgiu nas páginas da série Jovens Vingadores. Nesse período, o segundo Visão estava inativo, após ter sido despedaçado pela Mulher-Hulk, quer dizer, pela manipulação da realidade feita pela Feiticeira Escarlate e AH, VAMOS FALAR A VERDADE, A CULPA FOI DO BENDIS QUERENDO CHOCAR OS LEITORES E… Perdoem, é um tema delicado.
Bom, com a ausência do Visão sintozóide e uma equipe inteira de versões jovens dos Vingadores numa revista de sucesso escrita por Allan Heinberg e desenhada por Jim Cheung, bora aproveitar e criar um Visão adolescente. A solução pra inovar sem desrespeitar o legado foi usar a tecnologia da armadura do Rapaz de Ferro, um viajante do tempo que fundou a equipe apenas para deixá-la pouco depois (sem muito spoiler aqui, vá ler que o gibi é massa) e inserir na armadura parte dos padrões cerebrais do finado (na época) segundo Visão. Mas além da tecnologia em si, traços da personalidade do Rapaz de Ferro ficaram e se juntaram aos do Visão. Esse terceiro Visão passou a se chamar Jonas, tinha a memória de tudo que seu predecessor vivenciou ou armazenou e agia e falava como o Rapaz de Ferro, até certo ponto.
E o que isso tem a ver com Kirby?
Esse spoiler é inevitável. O Rapaz de Ferro, na verdade, era o adolescente que um dia se tornaria… Kang, O Conquistador.
A pausa dramática com certeza não deve ter causado tanto drama assim, imagino.
Mas vamos lá, acompanhe a engenharia reversa. O terceiro Visão só pôde existir, basicamente, graças à tecnologia futurista do menino Kang, além de ser, essencialmente, o próprio, em termos de personalidade. E Kang, inimigo tradicional dos Vingadores, fez sua primeira aparição ainda no comecinho da mensal da equipe nos anos 1960, quando tentou conquistar a Terra em uma história escrita por Stan Lee e desenhado por… JACK KIRBY!
Pronto. Está aí. Sem Kang, nada de Rapaz de Ferro, nem Jonas, o terceiro Visão.
Kirby não apenas criou o primeiro, estabelecendo o template para os outros, como conseguiu a façanha de plantar nas próprias histórias das décadas seguintes as sementes que serviriam para germinar ideias em outras mentes e, assim, criar mais duas versões do Visão. E caso você esteja pensando “AGORA SÓ FALTA DIZER QUE A FAMÍLIA DO VISÃO DA SÉRIE EM 12 CAPÍTULOS TAMBÉM É CRIAÇÃO DO KIRBY”, claro que não tem como forçar a barra e estabelecer qualquer ligação, além do personagem principal. Essa premiada e sensacional história não tem nada diretamente ou indiretamente ligado à Jack Kirby (falamos bastante dela num Pilha de Gibis). É tudo mérito de seu roteirista. O cada vez mais celebrado Tom King. Portanto, pare com isso de ficar tentando achar ligação em tudo. Parece coisa de gibi.