“Um bosque frondoso. Hectares de terra. O contraste com a vista atual de Hoshyar é gritante. Como deve ser sentir saudade de um lugar que não é seguro para você?”
Diariamente nos telejornais ou na internet nos deparamos com alguma notícia acerca da situação de refugiados na Europa. O debate, qualificado ou não, é incessante, em especial devido à situação da Venezuela, bem próxima a nós, e anteriormente do Haiti. Vale sempre a ressalva que um refugiado não é um imigrante: é uma pessoa que deixa seu país em decorrência de uma guerra ou perseguições de cunho político, religioso, racial ou nacionalista, impossibilitado ou com temor de voltar para sua terra natal. O refugiado não vai embora para tentar uma vida melhor economicamente falando: ele vai embora por não se sentir seguro, com medo de morrer apenas por ser quem é ou por suas convicções.
Isso fica muito claro nessa obra e a atualidade de Refugiados – A Última Fronteira é indiscutível, independente de opinião. A graphic novel lançada pela Darkside Book foi escrita e desenhada por Kate Evans, artista e ativista britânica. É bom deixar claro que Evans se posiciona a favor dos refugiados, vindos principalmente do Oriente Médio e da África, e tece críticas, ora pesadas ora sutis, ao governo britânico e a políticos de extrema direita, em especial a francesa Marine Le Pen. Dessa forma, se você espera uma história em quadrinhos jornalística isenta poderá se decepcionar. Por outro lado, Evans está longe de ser panfletária: a todo momento seu principal interesse é demonstrar a situação cotidiana de famílias refugiadas.
E nisso ela se sai muito bem. Graças a seu relato, é possível dimensionarmos melhor a situação da imensa população de refugiados e observamos a que eles se submetem longe de suas casas, num lugar por vezes hostil e com uma língua e cultura completamente diferentes. Daí a citação acima: o que leva você deixar tudo o que tem para morar em barracos improvisados, sem higiene, alimentação escassa e violência policial? Largar sua família, viajar em condições precárias com crianças, chegando à Europa apenas com um punhado de roupas e a certeza de que qualquer lugar, independente das péssimas condições que oferece, é melhor do que seu lar, mesmo que você tenha deixado para trás um bosque frondoso e hectares de terra para trabalhar?
Por meio de relatos diversos, vamos acompanhando o dia a dia da Selva, uma imensa favela de contêineres e barracas localizada em Calais, cidade portuária francesa, a meio caminho do Reino Unido, destino final de boa parte dos retratados por Evans nas inúmeras viagens que fez até o local. Temos contato com histórias de vida, situações dramáticas e o trabalho de voluntários em minimizar o sofrimento daquelas pessoas ali retratadas. No entanto, não espere passividade completa da autora. Ela demonstra também a exploração interna, as disputas locais, a inexperiência dos voluntários e os problemas acarretados por juntar, num único local, milhares de homens ansiosos e ociosos e pessoas dispostas a ajudar, mas sem saber o que fazer em determinadas situações (o que você faria ao ver que acabou de chegar entre as doações uma caixa de óculos de natação? Você acharia útil nessa situação?). Além de toda a sujeira produzida, é claro.
“E há lixo em todo lugar. Montes de coisas descartadas não ajudam. Me pergunto como seria este lugar se houvesse 95% de mulheres e não 95% de homens. Quem se importa com os rapazes? Quando o lar é uma zona de guerra, para os homens ‘em idade de lutar’ as opções são recrutamento ou extermínio. Todo mundo aqui poderia estar encarando o cano de uma arma”.
Graficamente, o álbum é muito bonito. Calais é muito conhecida por suas rendas e a autora deixa isso claro em todas as páginas, marcando visualmente com essa especifidade local (o próprio marcador de páginas é um pedaço de renda). Já a arte de Evans pode causar alguma estranheza, ainda que eu tenha adorado a forma como ela coloriu a história. Lá pelo final, Evans coloca algumas fotografias nos desenhos, feitas por ela mesmo na Selva, dando um ar ainda maior de veracidade ao seu relato. (No site da DarkSide, tem uma pequena amostra disponível. Clique AQUI e veja.)
Em resumo, longe de querer nos iluminar com uma verdade absoluta ou propagandear qualquer coisa, Refugiados mostra um lado pouco difundido desse atual panorama mundial. É bom para refletirmos sobre essa situação e fugir um pouco do mais puro achismo baseado em títulos de matérias jornalísticas no mínimo tendenciosas. Como gibi em si, é uma boa obra, nada espetacular. A arte talvez dê aquela entortada: no começo me causou estranheza, mas logo acostumei (ainda que, no saldo final, não tenha curtido, apesar da colorização). A narrativa não compromete e a leitura flui, com um texto claro e dinâmico. Não é uma leitura maçante, uma simples matéria de jornal; é um relato bem pessoal de alguém que viveu toda aquela situação.
Roteiro: Kate Evans
Arte: Kate Evans
Editor: Verso Books
Capa: Kate Evans
Publicação original: Threads: From the Refugee Crisis (junho de 2017)
No Brasil: outubro de 2018
Nota dos editores: 1.5