Morte e loucura assombram e fascinam a humanidade desde antes de termos registros históricos. Aquele paradoxo de saber que não se deve olhar para algo que vai te fazer sentir medo ou repulsa e mesmo assim ser incapaz de desviar o olhar. Talvez isso explique o apelo que um personagem como o Coringa tem, apesar de ser essencialmente odioso. Agora temos um filme nos cinemas que se propõe a contar um nova origem para o Príncipe Palhaço do Crime. Bobagem. Essa não é a origem dele. O Coringa tem várias origens, existe há mais tempo do que podemos imaginar e esse personagem que vemos é apenas uma face de um horror bem mais ancestral.
A ideia insana de uma face pálida e sorridente nos persegue desde que os primeiros humanos viram outros humanos mortos, em decomposição ou bem depois disso. A caveira, antes um rosto, agora a expressão mais contundente da morte, parecia sorrir mesmo sem ter mais vida. Uma imagem assustadora e que, para mentes primitivas, talvez fosse suficiente para causar a loucura. Não temos como provar isso racionalmente. Mas algumas certezas são mais fortes que a razão. Ou pensar assim é loucura?
De toda forma, a humanidade avançou e evoluiu. Veio o tempo em que passou a tomar o controle do mundo. Surgiu a ideia de riqueza, criando inevitavelmente a pobreza. Mas para ricos e pobres, a morte permaneceu igual. E viver tornou-se, em última análise, um período de espera até o dia de morrer. O que fazer, nesse meio tempo, além de trabalhar ou buscar satisfação pessoal? Bem… Matar o tempo. Do latim veio a palavra iocus, “passatempo” ou mesmo “piada”, que gerou Ioculator, aquele que elabora jogos, que faz da alegria um passatempo. Sorriso que tenta distrair os vivos para que esqueçam da morte que se aproxima. Por todas as partes do mundo, do Egito dos faraós à China ancestral, onde quer que houvesse um centro de poder e riquezas, também passou a existir a figura daquele que providenciava diversão e distração. O tolo. O bufão. O bobo da corte. O palhaço.
E a eles foi dado poder de, inclusive, dizer verdades aos ricos e poderosos que ninguém mais poderia falar. Isso impediu que muitos fossem mortos. Por sua capacidade de fazer rir… Na segunda metade do século XIV, outra figura ocuparia destaque no imaginário popular e nas expressões artísticas. Devido à Peste Negra, milhões de pessoas morreram e nas décadas de horror vividas pelos europeus, uma imagem se espalhou nas pinturas e ilustrações e esculturas. Um esqueleto coberto com um manto negro, carregando uma foice. Sua “face”, uma caveira. Enquanto a morte sorridente se aproximava, palhaços distraiam os vivos tentando fazê-los rir.
A humanidade se espalharia mais ainda, tomando também os mares. Em 1710, piratas saqueavam navios, usando bandeiras pretas em suas próprias embarcações, algumas com esqueletos segurando lanças, outras com dois ossos cruzados e uma caveira. Essas bandeiras passam a ser chamadas de Jolly Roger. Jolly, palavra italiana que significa “alegre”. Bandeiras da morte sorridente.
Em 1860, jogos e passar-o-tempo possuíam alcance e importância ainda maiores para a humanidade. Cartas de baralho passaram a trazer uma carta especial, com “poderes” e “autoridade” sobre as demais. O Coringa ou Curinga, visualmente inspirada pelos bobos da corte e bufões.
Em 1869, Victor Hugo conta uma história trágica em seu livro L’Homme qui rit, sobre um homem no qual foram feitas cicatrizes no rosto, criando um sorriso permanente e impossível de ser desfeito. As pessoas que fizeram as cicatrizes sabiam o que estavam fazendo. Na verdade, fizeram para transformar o homem, ainda garoto, em um produto vendável, para que outras pessoas pudessem pagar para ver o garoto como uma curiosidade.
Em 1928, Paul Leni dirige o filme The Man Who Laughs, adaptando a história de Victor Hugo, com o ator Conrad Veidt dando um rosto para o trágico personagem.
1940: a criação de um herói sombrio nas histórias em quadrinhos, em 1939, demandaria a criação de um personagem totalmente oposto, um ano depois. Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson, cada um tomaria para si o título de criador original do Joker, o coringa, o Palhaço. Em sua versão, Robinson afirmava que a motivação era ter um personagem contraditório. Morte e riso. Um perigo que aparenta ser inofensivo. E sempre disse ter se baseado em uma carta de baralho, o coringa. Finger, por sua vez, teria usado uma foto de Conrad Veidt, no filme The Man Who Laughs, como inspiração visual. Os três dividiram créditos, negaram créditos e ao final nunca foi esclarecido quem o criou. Mas desde então, uma inversão do que houve na Idade Média passou a acontecer nos quadrinhos. A figura sombria e assustadora, coberta com um traje negro, tornou-se o herói da história, salvando vidas, enquanto a figura sorridente, de roupas engraçadas e coloridas, fazendo piadas, tornou-se um assassino com uma contagem de corpos fictícios gigantesca. Um duelo sem fim. Batman tenta impedir o Coringa. O Coringa tenta vencer Batman. E o combate entre eles saiu das páginas dos gibis. Chegou aos cinemas. O Morcego perdeu em todos os seus encontros.
1989. Jack Nicholson interpreta o personagem de face branca, cabelos verdes e sorriso igual à uma ferida exposta. A batmania toma a cultura pop, o filme de Tim Burton fatura milhões, mas é o Coringa de Nicholson quem se torna o fator mais popular no filme.
2008. Heath Ledger se torna o Coringa e isso causa sua morte. Podemos racionalizar o quanto quisermos, mas foi isso que aconteceu. A face branca e sorridente da morte invadiu o mundo material através de Ledger, transformando o filme de Chris Nolan no primeiro filme de super-heróis a atingir 1 bilhão de dólares na bilheteria, eclipsando o próprio protagonista, tornando-se uma imagem impregnada nas mentes de bilhões de pessoas e replicada desde então na internet.
2019. Joaquin Phoenix e o diretor Todd Philips trazem Joker ao mundo. O Morcego não é mais o protagonista. O Coringa ganha filme próprio e vence o Leão de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cinema de Veneza. Ao redor do mundo, o público sai dos cinemas na estreia com elogios e aplausos e perplexidade. Batman perdeu. O Coringa venceu.
Depois de oitenta anos de embates, na ficção, o Príncipe Palhaço do Crime venceu o Cavaleiro das Trevas no mundo real. Não é primeira vez que o semblante pálido e sorridente da loucura e da morte se espalha pelas frágeis mentes humanas. Com certeza não será a última vez.
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