V de Medo

Sim, o título besta é só para chamar sua atenção e fazer você, leitor, obviamente discordar da associação da inicial V com uma palavra que começa com M. De toda forma, já que entrou e está aí, vamos papear uns minutos sobre V de Vingança. Talvez você até mude de ideia e concorde com o título…

No começo dos anos 1990, me deparei pela primeira vez com algumas edições da primeira publicação brasileira de V de Vingança, lançada pela Editora Globo. Foi em uma minissérie, nem lembro mais em quantas partes. E sim, esse texto não se propõe a ser fonte de pesquisa, nem uma análise apurada, é apenas uma impressão bem pessoal sobre o gibi que considero o melhor entre todos que já li. Portanto, releve checagem de fatos e exatidão de datas. A primeira lembrança que tenho dessa obra é de ter ficado desconcertado com a arte de David Lloyd. Entenda, para um pivete bitolado pelas histórias de super-heróis, a aparente “frieza” do traço e da composição era algo decepcionante. Como diria o bispo que recebeu uma certa hóstia “batizada” na história, MEA CULPA, MEA CULPA.

Larguei as edições em algum canto da casa ou troquei por outras revistas em algum sebo, não lembro bem. Mas alguns anos depois, já pelos idos de 1995, esbarrei com um encadernado da série, também da Globo, com uma capa preta onde a máscara do protagonista pendia de um prego, o símbolo V dentro de um círculo pintado em vermelho, uma paródia do A de anarquia. Resolvi dar outra chance. E hoje percebo que fui eu quem recebeu uma nova chance. Muito da minha percepção do mundo, da arte, da política e de como o ser humano cria e ao mesmo tempo é recriado por esse processo, despertou após ler V de Vingança. Admitir que foi preciso uma história em quadrinhos para me fazer enxergar verdades sobre a vida também diz muito sobre o quanto a MINHA foi protegida, privilegiada e alienada. A cada capítulo, pude ver de forma condensada, narrativamente elaborada e artisticamente didática, como a condição humana é angustiante, por causa de um fator: o medo.

A escolha do título desse texto, portanto, não foi aleatória. O medo explica, justifica e conduz o micro e o macro, os personagens e a trama, o gibi e o mundo real que o inspirou.

Sim, toda a história acontece em um futuro no qual o autor extrapola cenários que já se avizinhavam nos anos 1980. Alan Moore, uma cria da contracultura e do movimento punk, se via amedrontado pelo governo de Margaret Thatcher, a dama de ferro, Primeira-Ministra da Inglaterra responsável por consolidar todo um regime de austeridade na terra de Sua Majestade. E ele transpôs sua revolta para os roteiros de V de Vingança, projetando as possíveis consequências do crescente conservadorismo em seu país. Mas é justo admitir que, em essência, a motivação dos antagonistas, na ficção e das classes dominantes, no mundo real, convergem para a mesma sensação. O medo.É o medo de perder o poder, de que outra pessoa ou grupo ou ideologia ocupe seu espaço, de que sua forma de ver o mundo seja contestada ou substituída por outra, que gera reações que vão se tornando cada vez mais extremas. Thatcher e seus apoiadores temiam subversivos, insurgentes, descontentes. Os vilões de V de Vingança temiam o mesmo, mas em um cenário ultra exacerbado. A sensação de medo na história é tão entranhada e palpável que, mesmo as pequenas e raras vitórias criam uma angústia imediata, a apreensão de que algo vai dar errado a seguir. E temos o medo do outro lado. Das vítimas. Eve, a menina que é resgatada por V logo no início, representa bem isso. Em determinado momento, uma breve pausa em suas agruras, ela encontra gentileza e carinho em outro personagem, que tenta sobreviver em meio à loucura de seu mundo. E logo essa pequena paz é destruída. O medo é validado novamente. Foi difícil ler esse livro até o final. Certos momentos transmitiram uma angústia e desespero tão fortes que, por um momento, a ideia de abandonar a leitura quase me venceu. Mas aquele que talvez seja o maior talento de Moore, o de estruturar histórias com a precisão e elegância de um engenheiro, já havia me cativado desde outros trabalhos, então segui lendo as desventuras de V e Eve.

Em alguns trechos, a engenhosidade atribuída ao sujeito mascarado se sobressaiu, o que conferiu à trama um lado mais aventureiro, um maniqueísmo mais aceitável ao leitor que eu era até então. Some-se a isso o amor de V pelo teatro, pela arte e temos um terrorista “do lado certo”, numa missão romântica e cheio de momentos que, na minha cabeça condicionada a fazer comparações com o que me era familiar, eram uma resposta à pergunta E SE O CORINGA FOSSE O BATMAN? Um sujeito com a mente fora dos padrões, combatendo um império do mal. Sim, eu sei, ler muito gibizinho de super-herói causa danos irreparáveis. Nesses mais de 20 anos desde que li V de Vingança na íntegra, perdi a conta de quantas vezes reli. E de quantas novas interpretações e reinterpretações aconteceram. Posso afirmar, com clareza, que é a história em quadrinhos que mais gosto, a melhor que já li e a melhor produzida por um autor que contabiliza dezenas de outros trabalhos que são considerados como obras-primas.

Há alguns anos, adaptaram o gibi para o cinema, contra a vontade de Moore. O resultado não ficou à altura do original. Mas o conceito de rebeldia do protagonista e sua máscara foram cooptados por um movimento do mundo real, quando manifestantes passaram a usar máscaras semelhantes em protestos, com duas finalidades: esconder o rosto de quem protestava e se declarar oponente das classes dominantes. Em uma entrevista, Moore brincou dizendo que megacorporações usaram seu personagem sem sua autorização e que o resultado foi terem fornecido para a população um conceito que foi usado CONTRA os governos e, por tabela, contra o outro aspecto do establishment, as próprias megacorporações. Alan Moore se diz um mago, um praticante do ocultismo. Mas reconhece publicamente que essas forças ocultas agem, essencialmente, na mente humana. Não importa se são realmente feitiços e bruxarias ou se são apenas sugestões e induções agindo sobre a fragilidade da psiquê humana. O importante é que atuam e atingem mentes.

Se V de Vingança é uma obra que trata sobre o medo, tanto o que motiva inconscientemente o opressor, quanto o que oprime abertamente as vítimas, a sua mensagem final é de que sim, podemos superar e vencer o medo.

Que a arte, a comunicação e o diálogo podem superar a violência, mesmo que o insurgente precise sair de cena para que as novas gerações construam um novo mundo, a exemplo do final da série, quando V admite que seus métodos, embora necessários, não devem continuar em um mundo melhor. Eve se torna V, mas com uma nova missão e novos métodos. No mundo real? Bem, estamos vivendo no limiar de cenários iguais ou piores que os mostrados no gibi. EUA e Brasil governados por ultranacionalistas reacionários e, basicamente, amedrontados pelo comunismo, homossexualismo e diversidade étnica e racial. Trump e Bolsonaro, dois seres presos aos seus medos, arrastando multidões apavoradas que acreditam em seus discursos de ódio.

Ainda assim, hoje, 5 de novembro, a máscara representando Guy Fawkes, um insurgente inglês do século 17 e o nome de V estão sendo citados mundo afora pela internet. A mensagem de Alan Moore tornou-se global, os conceitos se materializaram. O feitiço do bruxo roteirista de quadrinhos funcionou e muitos encontram em V de Vingança uma forma de enfrentar o medo.


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