Transformers, a franquia que permeou a infância daqueles nascidos no comecinho dos anos 1980, caiu (de novo) no gosto do grande público em 2007, com o início da série de filmes dirigidos e produzidos pelo polêmico Michael Bay. Mesmo com todas as críticas à qualidade das suas histórias e excessiva ação nonsense, seus filmes se tornaram um grande sucesso de público e de merchandising, garantindo o revival dos Robôs Disfarçados para uma nova geração de fãs.
A história dos Transformers, tal qual o famoso subtítulo da franquia clássica, tem muito mais do que os olhos veem: apesar de originalmente ser uma linha de brinquedos, foi nos quadrinhos que os personagens como os conhecemos tiveram a sua identidade criada e consolidada. Nessa série de artigos, vamos tratar das gerações e interações dos Transformers com as histórias em quadrinhos que não só criaram sua mitologia como também mantiveram a franquia viva em seus anos menos felizes.
E toda essa história começa na Marvel Comics.
Em 1983, a fabricante de brinquedos norte-americana Hasbro enviou alguns executivos a uma feira de brinquedos em Tóquio, e voltou com os direitos de produção e distribuição de algumas linhas de colecionáveis. Entre estas, a principal aposta da empresa era a série Diaclone, composta de veículos que se transformavam em robôs. O acordo com a fabricante japonesa Tomy (hoje chamada Takara Tomy) permitia produzir e licenciar os brinquedos no ocidente, enquanto a fabricante original detinha os direitos no Japão e parte da Ásia.
E, para garantir o sucesso da sua empreitada e potencializar seus lucros, a Hasbro se fez a seguinte pergunta: como contar a história de carrinhos que viram robôs pras crianças e fazê-las se interessar por cada um daqueles personagens?
Para os anos 80, a resposta era simples: desenho animado e quadrinhos. Quer coisa melhor?
Pouco tempo antes, a Hasbro celebrava uma parceria de sucesso com a Marvel para o desenvolvimento dos personagens da sua linha G.I. Joe (no Brasil, Comandos em Ação). Na ocasião, a fabricante apresentou à editora pouco mais de uma dúzia de soldados genéricos e peculiares – um certo ninja com metralhadora, por exemplo – e ficou à cargo da Marvel criar nomes, histórias e todo o background para aqueles personagens.
A responsabilidade então recaiu sobre Larry Hama (Wolverine, Vingadores), escritor da casa com histórico militar e experiência em quadrinhos. O resultado foi tão bom que, além dos quadrinhos e do desenho animado produzido pela Marvel, o escritor ficou responsável não só pelos quadrinhos, como por escrever os “character files” no verso das cartelas dos bonecos por duas décadas.
Buscando repetir esse nível de sucesso, a Hasbro procurou novamente a Marvel, mais especificamente seu então editor-chefe Jim Shooter, para dar personalidade e contar a história daqueles carros que viravam robôs. As únicas orientações da Hasbro foram que o nome da franquia seria Transformers, e haveria duas facções: os Autobots e os Decepticons. Todo o mais ficaria a cargo da Casa das Ideias.
A princípio, Shooter incumbiu o freelancer Dennis O’Neil do desenvolvimento dos personagens. O saudoso escritor, que ficaria famoso nos anos porvir escrevendo Doutor Estranho, Homem-Aranha, Vingadores e diversos outros (além de se tornar editor da casa e depois da DC Comics), entregou um treatment que Shooter considerou “inutilizável”, e foi engavetado. Diversos criadores envolvidos na época, porém, reconhecem que o nome Optimus Prime foi uma contribuição do texto do O’Neil, considerado “um escritor erudito, com um grande senso de dignidade e poder em seus textos”.
De volta às suas mãos, Shooter então desenvolveu a história que hoje conhecemos: num texto de oito páginas, o editor apresentou à fabricante de brinquedos um planeta Cybertron destruído pela guerra civil que durava milhares de anos e se espalhava pelo espaço, enquanto Decepticons e Autobots brigavam pela hegemonia de sua raça. Nomes e personalidades foram criados para todo o catálogo de bonecos Diaclone recoloridos e rebatizados, a serem lançados naquele fim de ano: Optimus Prime, Megatron, Bumblebee, Starscream, Soundwave… todos esses nomes que são familiares para qualquer nerd hoje saíram daquelas oito páginas.
Para quem tiver a curiosidade, este treatment está disponível na íntegra neste link, que vale muito a leitura, pela sua qualidade e valor histórico.
TÊM INÍCIO OS ANOS MARVEL
Com o treatment aprovado, a Marvel Productions (braço da Marvel voltado ao desenvolvimento de produtos para TV e cinema) ficou encarregada de desenvolver o desenho animado The Transformers, hoje conhecido com o subtítulo Generation One (ou G1, em referência às interações e versões posteriores da franquia) e ainda fortemente cultuado entre os fãs mais fervorosos. Além disso, tal qual feito com G.I. Joe, um título em quadrinhos foi autorizado e produzido pela Marvel Comics.
Shooter encarregou o título ao escritor Bob Budiansky e ao editor Bob Harras, que seguiram fielmente o treatment, procurando fazer uma história mais madura, cronologicamente amarrada e ao mesmo tempo mais acessível que o próprio desenho da época.
Em setembro de 1984, a Marvel Comics lança The Transformers, minissérie em 4 edições com tratamento padrão da editora. Com capa da #1 do já aclamado Bill Sienkiewicz, texto de Bill Mantlo (Micronautas, ROM: Spaceknight, Cavaleiro da Lua, Homem-Aranha, Hulk, etc.) e desenhos de Frank Springer (veterano da era de prata, com passagens pelo Homem-Aranha, Vingadores, Capitão América, Cristal, Nick Fury, entre outros). Assim como era característica da época, Shooter e a Marvel não pouparam talentos por enxergarem na franquia outra possibilidade de sucesso entre seus diversos títulos licenciados da época (ente eles, ROM, Micronautas, Star Wars, G.I. Joe, Godzilla, etc).
A minissérie contou a chegada dos Transformers à Terra e a propagação da guerra no nosso planeta com o seu clássico Marvel Way: focando não apenas na guerra entre as facções e cenas de luta, mas também na interação dos cybertronianos com os seres humanos, seus esforços para compreender aquela cultura e o fascínio que ela pode causar aos robôs alienígenas (o autobot Jazz, por exemplo, se apaixona pelo rock ‘n roll e pelos humanos; Skids, herói vaidoso que se transforma numa van, faz amizade com uma humana que o lava depois de uma perseguição na estrada).
A fórmula funcionou, e aqueles personagens dos quadrinhos criaram forte empatia com uma faixa etária que achava o desenho animado muito infantil, e garantiu o sucesso da série para além daquelas 4 edições inicialmente planejadas.
Integrada ao Universo Marvel na edição #3, a cronologia dos Transformers seguiu a história do esforço de guerra Autobot diante dos avanços dos Decepticons, na Terra e em Cybertron, contando uma grande história coesa e seguindo as diretrizes de apresentação de novos produtos da Hasbro para a linha: Dinobots, Headmasters (que ganharam sua própria minissérie e depois se integraram à mensal), Powermasters, Firecons, Throttlebots, etc…
A história começa com uma breve história de Cybertron e sua guerra civil, cujo poder destrutivo tira o planeta de sua rotação e se perca no espaço. Fugindo da destruição a bordo da Arca, os 28 personagens originais aterrissam na Terra há quatro milhões de anos e despertam no já longínquo ano de 1984. Perdidos num planeta estranho, Autobots e Decepticons descobrem o potencial energético da Terra e passam a lutar por essas fontes de energia (elétrica, fóssil, nuclear…) para refiná-las em energon e se sustentarem. É assim que seu primeiro embate se dá numa plataforma petrolífera e pouco depois o Homem-Aranha os encontra numa luta por uma usina nuclear atacada por Megatron.
Nas primeiras edições, muitos conceitos que seguiriam a franquia nas suas décadas subsequentes foram se formando, como a sobrevivência do planeta tecnorgânico moribundo, o papel da Matriz da Criação (que com o tempo se tornou a Matriz da Liderança), as conotações híbridas militares/religiosas do título “Prime”, a constante presença de caçadores de recompensa de outras raças que odeiam a beligerância dos cybertronianos, as relações com a humanidade e seus problemas sociais e científicos.
O título logo construiu seu próprio universo elaborado e abrangente, incluindo centenas de personagens – Transformers, humanos, alienígenas – na Terra, Cybertron e além. Experimentou com histórias de horror, tramas detetivescas e muita, muita tragédia. No final da série, um plot construído sem pressa trouxe a ameaça sinistra da Unicron, que encerraria o título com um “ragnarok” causado pela vinda dessa ameaça que, nos moldes do Galactus, devoraria o planeta Cybertron.
Por se tratar de um gibi destinado à venda de brinquedos, Transformers apresentava um elenco sempre rotativo. Os novos personagens costumavam ser apresentados subitamente, para atender às demandas das novas linhas que a Hasbro colocaria nas lojas naquele Natal, e os personagens que não seriam mais lançados eram frequentemente deixados de lado ou mortos em massa, em batalhas épicas e climáticas.
Aliás, a constante interferência da Hasbro no editorial, exigindo a inclusão dos novos brinquedos e conceitos fizeram a qualidade do título oscilar muito depois dos seus dois primeiros anos. Tramas interessantes tinham que dividir espaço com conceitos que soavam ridículos, como transformers minúsculos, relançamentos de moldes antigos com novas cores que se tornavam novos personagens, humanos que se tornavam ciborgues aptos a se transformar na cabeça de outros transformers (os Headmasters), etc e etc…
Ainda assim, muito leite foi tirado de pedra, como quando a Hasbro criou os Action Masters, transformers não transformáveis (sério, tem gente que gosta até hoje), traduzidos pela Marvel como um efeito colateral de um novo tipo de combustível/esteroide que os tornava mais fortes mas incapazes de assumir suas formas alternativas. Ou mesmo os Pretenders, “cápsulas” que envolviam os robôs na forma de monstros ou soldados, que nos quadrinhos se tornaram disfarces biológicos dos cybertronianos.
Mas é fato também que Bob Budiansky, depois de anos tendo que contar suas histórias para atender às mais recentes demandas de aparência de brinquedos da Hasbro, cansou.
No Brasil, os Transformers tiveram 12 edições do gibi da Marvel publicadas pela Rio Gráfica Editora, a RGE, braço editorial do grupo Globo. Apesar da tradução peculiar adotada para os personagens e facções (os Autobots eram os Optimus, e os Decepticons eram os Malignus, por exemplo), o título fez enorme sucesso, gerando diversos álbuns de figurinhas e revistas-pôster, que marcaram aquele público.
Apesar das mudanças altamente condenáveis pros dias atuais, este que vos escreve deve confessar que nutre grande carinho por essas edições, pois foram elas – achadas no meio dos gibis da Mônica na biblioteca do colégio – que me fizeram começar a ler e comprar quadrinhos… e a colecionar bonequinhos, oh céus. Guardo carinho especial pelo arco do “Blaster” e do Perceptor fugindo num Cybertron dominado pelo lorde decepticon Straxus que destruía seus inimigos afundando-os no terrível Caldeirão Fundidor. Diversas cenas de autobots se desfazendo naquela caldeira gigante influenciaram irremediavelmente a minha mente juvenil.
O FIM DA GENERATION ONE E O FIM DA ERA MARVEL
Passada a febre do lançamento do desenho e bonecos em 1984, assim como o boost do longa metragem de 1986, o gibi entrava com pouco fôlego nos anos 1990. Com melhores caracterizações, arte mais rebuscada e histórias épicas, os gibis da Marvel UK (dos quais falaremos no próximo texto!) caíram no gosto dos fãs dos dois lados do oceano, o que fez a Marvel americana convocar a equipe inglesa para assumir o título ianque, então fadado ao cancelamento.
Simon Furman repetiu o sucesso do seu texto também deste lado do Atlântico, assumindo os roteiros na edição #56 ao lado do desenhista Geoff Senior, com a tarefa de encerrar todos os plots em aberto e preparar uma conclusão apropriada. Suas edições, porém, elevaram as vendas, o que lhe garantiu uma extensão da revista até o número 80, no qual Furman encerrou o arco da apocalíptica e profetizada chegada de Unicron a Cybertron. Porém, nunca foi tão simples assim: as constantes pressões editoriais e ameaças de cancelamento irritaram o escritor, que reclamou nas páginas do próprio gibi, nomeando o novo vilão decepticon Jihaxus, que se lê “gee, axe us” (algo como “putz, nos cancele logo”).
A fórmula, porém, estava mesmo desgastada. Os anos 1990 chegaram, a moda nos quadrinhos eram os heróis e anti-heróis sombrios e violentos, estilo grim ‘n gritty, numa exacerbação daquilo que Frank Miller nos trouxe em Cavaleiros das Trevas e Alan Moore em Watchmen. Carrinhos que viravam robôs de repente ficaram… infantis.
Mas a Marvel ainda detinha os direitos da série e queria seguir os caminhos do gibi dos Joes, revitalizado como G.I. Joe – Ninja force (afinal, ninjas também são sombrios e violentos).
Em novembro de 1993, era lançada a revista Generation 2, num esforço conjunto com uma nova linha de brinquedos. Com Transformers cheios de armas, balas, facas e dentes cerrados, a capa metalizada da #1 avisava que esses não eram os Transformers que seu pai conhecia e amava. Megatron não se transformava mais numa arma e sim num tanque de guerra, quase todos os personagens ganharam novas cores (claro, para relançar os bonecos antigos e fazê-los parecer novos) e uma nova atitude: violenta, sombria e, às vezes, maníaca.
A iniciativa não teve boa resposta dos fãs e o título foi cancelado após 12 edições. O desenho animado G1 já havia sido cancelado anos antes, continuações foram feitas apenas no Japão. Depois do fracasso, a Marvel não mais renovou o contrato de licenciamento. Até mesmo a Hasbro parecia ter desistido da franquia, e de fato o fez por longos três anos, até o relaunch protagonizado pelo desenho Beast Wars.
De certa forma, os Transformers foram vítimas da controversa década de 1990 nos quadrinhos, uma década marcada por péssimas decisões editoriais, crescimento da exploração do merchandising e da especulação do mercado e dos colecionadores e da própria mudança de gerações. Os gibis da franquia ficaram esquecidos por um bom tempo, mas subsistiram graças a alguns nomes e editoras. É o que começaremos a contar na segunda parte dessa trajetória.
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