Mulher-Maravilha: finalmente a justiça

A frase “se pudesse voltar no tempo…” é agridoce, traz uma ilusão logo desfeita pela realidade. É impossível, até agora, viajar no fluxo temporal para corrigir ou desfazer erros, botar as coisas no rumo que se gostaria. A menos, é claro, que estejamos falando da ficção. Muitas injustiças históricas de hoje, só podem ser mudadas um dia de cada vez, para que o amanhã seja melhor. Mas quando estamos mexendo com personagens e conceitos fictícios, é possível fazer o impossível.

Olha só o caso da maior e mais conhecida super-heroína da cultura pop. Diana de Themiscyra, princesa das amazonas, a Mulher-Maravilha, estreou em outubro de 1941 na revista All-Star Comics #8 e, ao longo desses seus quase 80 anos, se manteve relevante e influente nos quadrinhos, na TV e, mais recentemente, nos cinemas. Ainda assim, em um mundo onde o machismo e misoginia são os inimigos maiores para as mulheres, só mesmo uma personagem fictícia sendo ajudada por um recurso ficcional (a alteração do próprio tempo) para atacar o problema e inspirar suas inspiradoras, as mulheres de carne, osso e coragem diária.

Já na sua estreia, a Mulher-Maravilha pode ter sido tratada de forma injusta. Poucos meses depois de sua primeira aparição, ela passou a integrar a Sociedade da Justiça da América (SJA), primeira equipe de super-heróis dos quadrinhos, porém, na condição de secretária do grupo. Seu criador, William Moulton Marston (que também usou o pseudônimo Charles Moulton), idealizou Diana como uma personagem que pudesse superar e desfazer os estereótipos aos quais as mulheres sempre estiveram presas tanto no mundo real quanto na ficção, colocando-a em situação de protagonismo. Infelizmente, ao ser levada à uma equipe de super-heróis totalmente formado por personagens masculinos, acabou ficando em segundo plano.

A culpa tem sido atribuída ao criador da SJA, Gardner Fox, mas isso é algo que foi recentemente contestado por Jennifer DeRoss, (autora do livro Forgotten All-Star: A Biography of Gardner Fox) em sua tese de mestrado intitulada Weighing in on Wonder Woman: Analyzing Gardner Fox’s Writing for Potential Sexism, na qual sugeriu que a decisão de fazer da heroína uma “assistente administrativa” da Sociedade da Justiça teria sido tomada pelo editor Sheldon Mayer e que, ao invés de escantear Diana no time, a medida apenas visava contornar uma regrinha da época, na qual personagens com revista ou histórias solo, eram apenas membros honorários. Os maiores exemplos foram Superman, Batman, o Lanterna Verde Alan Scott e o Flash Jay Garrick, que não participavam das histórias, sendo apenas citados.

Na função de secretária, ela ainda aparecia na abertura e na conclusão das aventuras. Mesmo assim, não deixa de ser injusto termos uma personagem projetada para o protagonismo feminino servindo como coadjuvante para seus colegas masculinos. Algo que seria remendado, eventualmente, em tempos mais progressistas, com revisionismo e retcons, embora ESSA Diana surgida na década de 1941 não fosse mais a mesma, em vários aspectos, apesar de ser uma em um punhado de personagens a sobreviver ao período em que os super-heróis praticamente sumiram da cultura popular. Entre 1950 e 1956, apenas Superman, Batman, Aquaman, Arqueiro Verde e a Mulher-Maravilha tiveram histórias publicadas com regularidade, até o surgimento do Flash Barry Allen e todo o advento da Era de Prata. No começo dos anos 1960, todos os heróis DC, antigos e novos, foram atualizados. E assim, a Diana que participou da SJA passou a fazer parte de um universo à parte, enquanto uma versão mais jovem e com certas diferenças passou a fazer parte da Liga da Justiça, versão modernizada do primeiro supergrupo.

Tanto uma quanto a outra Diana se mantiveram em evidência, só que o propósito inicial de fazer dela uma personagem feminina forte acabou sendo diluído, o foco se resumiu ao super-heroísmo de praxe, aparece uma ameaça ou vilão pra ser combatido e vencido, tchau e até o próximo mês onde tudo recomeça. Sim, tivemos uma breve tentativa de mudar isso com a fase produzida por Denny O’Neil e Mike Sekowsky, mostrando Diana sem poderes e recorrendo às artes marciais, mas durou pouco e não impactou muito. E no final dos anos 1970, a série de TV estrelada por Lynda Carter, embora recorresse ao pacifismo para solucionar dilemas, acabou ficando no inconsciente coletivo de gerações mais pela beleza da atriz.

Mas nos gibis, a Mulher-Maravilha perdia cada vez mais público e algo precisava acontecer. Veio 1986 e o fim dos mundos conhecido como Crise nas Infinitas Terras, que tirou de cena a primeira Diana, da Era de Ouro e “matou” a segunda, a da Era de Prata. Na verdade, ela tinha sido devolvida ao seu estágio de criação original, nas areias da praia em Themiscyra. Só que isso nem foi abordado na sua mensal que estrearia a seguir. Logo, uma nova versão da princesa voltaria em revista própria, co-escrita por George Pérez e Bruce D. Patterson. Nessa nova fase, acabou a necessidade de identidade secreta, o foco em pautas feministas se tornou objetivo e não mais subjetivo, seu envolvimento com a mitologia greco-romana foi melhor desenvolvida. Um belo passo para fazer justiça à princesa das amazonas.

No decorrer das décadas seguintes, Diana teve seus altos e baixos. Histórias e fases ruins intercaladas com outras boas ou MUITO boas. Teve até um período em que o lendário John Byrne resolveu mexer na participação dela na SJA. E teve a ideia marota de recorrer ao expediente que abriu essa nossa conversa, a viagem no tempo. Uma sacada não tão original, mas que tem sua eficácia comprovada. Por volta de 1997, Byrne matou Diana e fez dela a deusa da verdade no panteão olimpiano. Sua mãe, a rainha Hippolyta, assumiu o nome e traje de Mulher-Maravilha, acabou viajando no tempo e passando uns anos com a SJA, ocupando o espaço que deveria ter sido da Diana de 1941 na cronologia da Era de Ouro, mas com uma atuação efetiva, não mais uma auxiliar nem secretária. De certa forma, foi feita justiça para a personagem, embora isso fosse um remendo.

O tempo passa, o tempo voa, fases vem e vão nos quadrinhos, eis que a mina de ouro é encontrada nas telonas. Os filmes de super-heróis começam a render bilhões aqui e acolá, a Marvel domina o cenário, a DC almeja conquistar uma parte desse espaço e, para isso, saca não um, mas logo três personagens em um só filme. Depois do desempenho tímido de Man of Steel em 2012, decidem lançar Batman vs Superman, que decepciona nas bilheterias e na opinião de parte do público, PORÉM, tem um elemento inesperado e que agrada a todos, ironicamente, uma personagem que nunca tinha recebido sua chance no cinema.

Superman e Batman foram bem sucedidos tanto em termos de qualidade e de bilheteria, quanto no número de adaptações para o cinema. Já a Mulher-Maravilha, nunca foi além da TV e dos desenhos animados. Isso faz com que sua elogiada participação (como coadjuvante, sem nem mesmo uma menção no título) em um filme onde os dois protagonistas masculinos foram descaracterizados e o resultado final decepcionante, tenha se tornado uma vitória, uma justiça tardia comemorada pelas fãs (e pelos fãs, ora essa) da heroína.

Sorte de “principiante”? Ser coadjuvante é fácil, quero ver é ser protagonista! As duas questões logo foram respondidas com o filme solo de Diana, dirigido por Patty Jenkins e estrelado por Gal Gadot. História bem contada, bons personagens, ação, diversão, todo o conjunto funcionou muito bem, até mesmo as falhas eventuais foram relevadas diante do resultado geral positivo. 2017 se tornou o ano em que começou uma reação em cadeia nas diversas mídias onde Diana caminha, mudando inclusive a história da personagem, recorrendo, de certa forma, à uma boa e velha viagem temporal. Ou, ao menos, uma remexida no continuum espaço-tempo.

O sucesso da versão cinematográfica da Mulher-Maravilha validou e estabeleceu uma verdade que ardeu nos haters e que agora reestrutura sua relevância também nos gibis. Nos filmes, usando o fato de que ela é, basicamente, uma personagem com um pé na vida humana e outro na vida mitológica, ficou decidido que Diana envelhece diferente de uma pessoa comum, por isso está em ação no mundo dos homens desde a Primeira Guerra Mundial. No universo cinematográfico, ela é a primeira super-heroína. Se nos gibis esse título sempre foi dado ao Superman, mesmo com todas as alterações, agora o desempenho nas bilheterias somado à própria mitologia da princesa fez com que ela não apenas triunfasse onde Homem de Aço e Morcego de Gotham falharam, mas também ocupasse naturalmente o posto de super-heroína original.

Isso, obviamente, não ficaria sem repercussões na sua casa original: os quadrinhos. No começo de outubro, durante painel na New York Comic-Con, o editorial da DC Comics anunciou que vai (mais uma vez) organizar uma linha de tempo coerente para os diversos eventos e eras do universo DC. O ponto mais importante, revelado até agora: Diana de Themiscyra, a Mulher-Maravilha, será a primeira super-heroína da editora, cujo surgimento pouco antes da Segunda Guerra Mundial teria inspirado a primeira era heroica. Em outra notícia, foi revelado que Scott Snyder, atual roteirista da Liga da Justiça, vai escrever uma nova mensal da Sociedade da Justiça, recontando as aventuras da equipe nos tempos da Era de Ouro. E, em uma entrevista, Snyder afirmou que todos ficarão surpresos com quem vai reunir os heróis para formar a Sociedade, em sua versão.

Embora não tenha dado nome, tudo indica que uma certa amazona, que já foi secretária da SJA em uma outra realidade e situação, agora seja a inspiradora, líder e fundadora não apenas da primeira era dos super-heróis, mas da super equipe original, a Sociedade da Justiça da América. A justiça, como diz o ditado, tarda, mas não falha.


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