Meu Mundo Versus Marta

3.5

NOTA DO AUTOR

Em 2021, voltamos a fazer parte do Time de Leitores da Companhia das Letras, e esta é a primeira resenha publicada na retomada desta parceria!

Se você só compra quadrinhos pela capa, vai se decepcionar. Se você compra pela sinopse, à primeira vista você vai se sentir completamente enganado por esta. Meu Mundo Versus Marta (Quadrinhos na Cia, 2021), é descrito pela própria editora como “uma graphic novel surpreendente sobre amor e solidão, distopia e sonho, assinada por dois dos nomes mais relevantes dos quadrinhos e da literatura contemporânea”. E é isso mesmo, mas não de uma forma óbvia – ou, ao menos, direta.

O que é esse desenho da capa? Um supercomputador kirbyano? O exterior de uma nave espacial gigantesca flutuando por um espaço aqui representado num chamativo contraste entre duas cores? Por que o cabelo da personagem é desenhado de forma diferente a depender do lado que vemos seu rosto? Não há explicação, a história não te dirá nada de forma clara e nem há de se ver grandes cenários ou maquinários de sci-fi aqui. Ao começar a ler e nos depararmos com uma ambientação mundana, completamente diferente do que se esperava, voltamos à sinopse e a relemos encucados:

Planeta Terra. Época e lugar desconhecidos.

Esta é a história de um pacto de equilíbrio sutil. De um lado, os ameaçados, do outro, a ameaça ― da qual, apesar dos anos de convívio, das tentativas de maior aproximação, ainda pouco se sabe.

Em um cenário de ritos intermináveis e sob a mediação de uma crescente desconfiança, o quadrinista Rafael Sica e o escritor Paulo Scott criam uma história de arquitetura extraordinária, de busca por tudo aquilo que há de humano em nós ― e colocam em cena o diálogo do qual depende a ordem, a suposta ordem, o concerto dos dias. Da paz. Da única paz.

A mais terrível paz.

MMXM (acrônimo que identifica a série) não é uma leitura fácil, principalmente pelo pouco que se há ali para “ler”, em sentido estrito: a história não tem diálogos, é totalmente contada pela narrativa visual que acompanha os dois protagonistas anônimos. Acompanhamos um começo de narrativa comum, com um adulto deixando uma criança em casa para ir trabalhar, e aos poucos os elementos e cenários vão se tornando incomodamente surreais, enquanto aquela criança deixada em casa cresce num ritmo assustador e é adulta ao fim do expediente do outro protagonista, as situações aparentemente cotidianas vão revelando novas camadas e as pessoas à volta dos protagonistas se tornam cada vez mais paranoicas e o clima vai se tornando claustrofóbico.

O argumento escrito por Paulo Scott em 2011 foi a base de MMXM, teve muitas nuances adicionadas pelas impressões do desenhista ao longo destes dez anos, mas é o escritor que nos dá algumas poucas pistas para melhor compreender a obra, ao traçar um paralelo entre a Marta do título com um “Marte”, “uma arma não compreendida”, que precisa ser contida e guiada por “um Atena, que fosse fruto de uma sabedoria e, ao mesmo tempo, um veículo que propiciasse um ensinar e um aprender” (são estes os protagonista?). É na sutileza da narrativa visual dos acontecimentos mostrados que vamos conseguindo fragmentos de sentido para montar os porquês dessa história. Ou, talvez, não.A arte do Rafael Sica é mais complexa que o seu traço – este, à primeira vista, “feio”. Se por um lado temos figuras e cenários de traços simples, sem variações de peso (não há traços mais grossos e mais finos, quero dizer), a narrativa é competente para apresentar os elementos e conduzir o leitor. Além disso, o layout das páginas é peculiar, e um elemento à parte na história. Não é um estilo de arte que agrada aos olhos, mas cumpre seu papel nesta obra – apesar da sua simplicidade e rusticidade confundirem o leitor em algumas expressões dos protagonistas.

Sica vale-se de séries de pequenos quadros colados entre si, sem sarjeta (aquele espacinho entre os quadros), o que reforça a velocidade da narrativa e a claustrofobia proposta em seu clima e faz os quadros servirem quase como time-lapses de momentos fugazes, enquanto quadros maiores dão ao leitor uma melhor noção do ambiente e cenário daquela ação. Não raro você tentará seguir a leitura do primeiro quadro de uma página para o primeiro quadro da próxima – e às vezes isso fará sentido. Noutras, não.Muito mais que buscar “O” sentido definitivo de cada acontecimento desse gibi ou encaixar a sinopse muitas vezes repetidas em resenhas que se esforçam pra mostrar que entenderam tudo, o mais interessante desta obra é a experiência de lê-la, de um ponto de vista de técnica de narrativa visual em quadrinhos. O argumento (já que não podemos falar de “o texto”) se não é claro, é instigante, te faz dobrar a atenção em cada pequeno quadro e te mantém interessado até o final – que, enfim, é o ponto fraco da trama por apostar em um clichê muito abaixo de toda a experiência proporcionada até aqui.

Repito, não é uma leitura fácil. Não é um traço fácil de se gostar, tampouco o tipo de história que gostamos de ler. Se um de nós tivesse que fazer um gibi como trabalho da escola e entregasse um Meu Mundo Versus Marta, receberia nota zero. Eu não leria este quadrinho senão pelo acesso que a editora nos deu a ele, é verdade. Mas, tendo lido, recomendo que o façam.

 

  

Roteiro: Paulo Scott

Arte: Rafael Sica

Editor: -

Capa: Rafael Sica

Publicação original: 

No Brasil: março de 2021

Nota dos editores:  4.3


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