Lois Lane

QUEM PRECISA DE LOIS LANE?

Vamos falar a verdade? Cada um de nós tem sua própria verdade. Mas e quando a verdade para você não é a verdade para outra pessoa? E aí, como fica?

Um exemplo: Lois Lane, que durante mais de 5 décadas foi a namorada e nas últimas 3 é a esposa do Superman, é uma das mais importantes e relevantes personagens dos quadrinhos. Verdade? Para alguns, sim. Já pra outros…

Eis que esse é, também, o grande tema na mais recente série solo da jornalista encrenqueira de Metropolis. Em vários níveis, é bom ressaltar. O que é a verdade? Pois a verdade, em uma série em 12 capítulos escrita por Greg Rucka e desenhada por Mike Perkins, está baseada na dúvida, ou melhor, nos questionamentos. E eles são muitos, desde a própria existência da série, passando pelo ofício de Lois, como também pela gigantesca revelação cósmica que a princípio não faz o menor sentido em um gibi tão pé no chão quanto esse. Questões, inclusive, envolvendo Os Questões. Não entendeu? Então vamos lá…

O QUE ACONTECEU COM A MULHER QUE QUERIA SABER TUDO?

A fama de Lois, nessas mais de oito décadas desde sua primeira aparição, acabou se tornando sinônimo de tudo que viria a ser rejeitado nos personagens fictícios femininos, principalmente em gibis de super-heróis. A mocinha em perigo, servindo pra mostrar o herói como salvador. Não foi uma fama injusta, afinal, por conta de inúmeras cenas e sequências nas quais ela literalmente caia dos céus (às vezes de propósito) apenas para ser resgatada pelo Superman. Porém, é injusto considerar Lois uma mocinha em perigo.

Na magistral série de desenhos animados produzidos pelos irmãos Max e Dave Fleischer, no comecinho dos anos 1940, ela é impetuosa, decidida, independente, esperta até dizer chega e mostra serviço pilotando aviões sozinha em busca de pautas, pegando em armas pesadas e trocando tiros com criminosos durante um assalto a trem, tudo isso enquanto dá rasteira em Clark Kent e no Superman.

E se no filme clássico de 1978, vemos Margot Kidder encarnando Lois como uma mulher moderna e autossuficiente, também vemos a personagem literalmente caindo nos braços do Superman interpretado por Christopher Reeve, na icônica cena do acidente com o helicóptero. Mas essa é até perdoável, de tão magnífica que ficou. até mesmo pela frase genial “YOU, YOU GOT ME? WHO’S GOT YOU?!?”, perfeita para a mulher que vive fazendo as perguntas certas em busca da verdade.

Nesse meio tempo entre a versão do desenho clássico e a do filme de Richard Donner, a Lois dos quadrinhos foi de um lado pro outro, a depender do editorial e dos roteiristas. Seja em seu longevo gibi próprio ou nas mensais de Kal-El, ela alternava entre a repórter intrépida, a solteirona desesperada, a rival da outra namoradinha do Superman (Lana Lang), sempre se metendo em problemas que o Homem de Aço teria de resolver. Aqui e acolá, alguém tentava escrever a personagem com um pouco mais de dignidade jornalística, tratando-a com um pouco menos de objetificação e sexismo, mas nada que durasse muito.

Nos anos 70, com todo o contexto da liberação feminina e da contracultura, até tentaram, mas quase sempre acabava tudo em alguma paródia ou patacoada ao invés de uma afirmação duradoura da persona mais, digamos, séria de Lois. Nos anos 1980, John Byrne deu passos tímidos porém seguros no que viria a ser a redenção de Lois Lane nas décadas seguintes. Sua versão era fiel à original, mas também às poucas e raras vezes em que ela foi mais do que uma personagem rasa e chatinha. A partir daí, Lois foi conquistando o devido respeito.

OK, nem parece que estamos falando sobre a recém concluída série própria da senhora Lane, mas é preciso entender o que ela passou para valorizar o que ela é hoje. E assim poder afirmar que todos precisam de Lois Lane. Discorda? Deixa te dizer uma coisa…

TODOS OS MUNDOS DE LOIS LANE

Em toda a mitologia do Superman (e do universo DC por tabela), é seguro afirmar que Lois merece um destaque singular, por mérito próprio. Esqueça o fator emocional por um momento. Namorada/esposa do super-herói original, mãe de Jon Kent, o Superboy. Sim, ela é tudo isso, mas isso tudo apenas faz parte do que ela realmente é. E Greg Rucka entendeu, desenvolveu e narrou 12 histórias sobre essa mulher, obcecada pelo que é certo e por tornar público tudo que possa capacitar cada pessoa a encontrar a verdade. Usando camadas e níveis diferentes.

Sim, a situação de “elo” entre a humanidade e os quase-deuses do panteão heroico DC é admirável. Lois pode e deve sempre ser aquela personagem que conserva a perspectiva humana em meio aos feitos sobrenaturais, épicos e grandiosos de Kal-El e seus amigos. mas ela vai um pouco além, interferindo, usando, cooptando e conduzindo da maneira que pode os elementos fantásticos com os quais se vê obrigada a conviver. E mesmo assim não se torna parte desse mesmo mundo mitológico, ao menos hoje em dia. Ao longo de seus oitenta e dois anos, já teve quase todo tipo de superpoder, mas é a Lois humana e sem poderes que se mostra mais interessante e foi essa que vimos nas histórias de Rucka.

Os temas predominantes nessa série também foram mais “pé-no-chão”, inclusive tratando de questões dos nossos tempos, como o degradante uso da máquina pública do governo dos EUA ao lidar com a situação de imigrantes no país. Aliás, vale ressaltar a importância de citar diretamente em várias edições a controversa agência norte-americana Immigration and Customs Enforcement (ICE) , responsável por uma verdadeira caçada a todos que estão em condição irregular no país. A corrupção obviamente não poderia estar fora das pautas de Lois Lane, assim como o abuso de poder e os ataques sofridos por jornalistas ao redor do mundo, apenas por estarem cumprindo seus compromissos.

E assim teve início uma série para poucos. O que não é julgamento de valor, nem medida de qualidade, calma. Mas convenhamos, nem todo leitor gosta ou se interessa por histórias sem as pirotecnias, ritmo alucinante ou recursos narrativos tradicionais dos nossos amados gibizinhos.

Logo na primeira edição, Lois transita de um mundo ao outro, deixando claro que todos formam um só mundo para ela. (Guarde bem esse aspecto. É crítico e essencial reparar nisso.) Continuando, vemos a jornalista imersa em uma investigação sobre interesses escusos por parte de integrantes do governo norte-americano, um mundo que reflete o nosso obviamente. Ela é surpreendida por outro fato, um assassinato em Moscou, mais especificamente de uma outra jornalista, mais uma trágica realidade do nosso mundo abordado na ficção. Então vemos a sutileza magistral do que talvez seja o ponto mais forte nos roteiros de Rucka, a naturalidade quase monótona nos diálogos e interações de seus personagens. Lois, uma mulher chamada Alejandra, Perry White, Clark Kent… Todos extremamente plausíveis, humanos, reais, porém, já com um pé no outro mundo, aquele onde a fantasia explode com suas cores e feitos sobre-humanos. Mas, claro, até isso, na escrita de Rucka, é “sóbrio” para seus admiradores e “frio” para quem não se agrada. Viu? Verdades divergentes. Todas valendo, nenhuma se conciliando. (Guarde isso também, vai fazer mais sentido lá pro final.)

De forma discreta, sem alarde, Rucka traz para a trama um elemento que lhe é querido. Uma Questão. Mas não é um conceito abstrato e sim uma personagem. Renee Montoya, herdeira da identidade e do legado de Victor Sage, o Questão. Pois essa vigilante, ex-policial de Gotham, aparece como uma contratada de Lois. A jornalista que questiona, usando a Questão em suas investigações. Fora essa pequena ironia, Greg Rucka faz mais. Planta uma semente que vai germinar intensamente ao final dessas histórias. Uma repórter, uma vigilante urbana, corrupção, violência, jornalismo, super-heróis… Quem diria que tudo isso faria todo sentido para tentar explicar os mundos fantásticos que conhecemos nesse mundo potencialmente infinito da DC Comics?

Ao longo das edições, temos interligações com histórias das mensais do Superman, a exemplo do “Evento Leviatã“, explorando o aspecto mais ligado à Lois. Uma personagem de outras épocas em que Rucka esteve na DC, Jessica Midnight, reaparece mudada. E um finado dá as caras, ou melhor, sua não-cara. Para espanto e assombro de sua “herdeira”. Um spoiler que evitaremos, mas que o leitor enxerido já deve ter deduzido.

Lá pela edição 7, Rucka surpreende. Ação, cada vez mais personagens subindo ao palco principal, subtramas expondo suas verdadeiras formas, o que parecia um emaranhado disforme se revela uma elaborada e coesa trama, capaz de unir harmoniosamente gêneros e sub-gêneros da ficção, do thriller político à fantasia à ficção científica e nesse meio você já está se ajeitando na cadeira, querendo reler as histórias anteriores, ansioso pela conclusão.

Tudo explode nas edições 10, 11 e 12. Possivelmente, a grande revelação inesperada dessa série tem mais a ver com algum planejamento editorial do que mesmo com os planos de Rucka para as histórias. Mas funciona bem demais. Ele aproveita, com maestria, para resgatar personagens e conceitos que lhe são queridos. Faz disso um necessário e orgânico esforço pela diversidade nos quadrinhos, quando conduz a história com personagens femininas determinadas e capazes, trilhando suas jornadas de forma tão independente que só muito depois percebemos o quanto os personagens masculinos nem fizeram falta.

E já que estamos falando sobre verdades, uma opinião muito particular e possivelmente impopular: Greg Rucka escreve melhor quando escreve sobre crimes, noir e, mesmo numa ficção científica, foca nas relações humanas, mais do que nas cenas espetaculares. Pode não ser uma verdade para você, leitor que sobrou lendo isso tudo. Mas é para o autor deste review maluco. Por isso mesmo, essa série da Lois talvez seja surpreendente. Rucka fala sobre temas cósmicos e faz isso MUITO bem. Possivelmente por não abrir mão daquilo que, como já foi dito acima, é seu forte. Ele humaniza o tema, pega pelo ângulo mais pessoal, usa a perspectiva de personagens críveis para falar de coisas incríveis. Renee Montoya e pelo menos duas pessoas que lhe são queridas, servem perfeitamente para explicar, criar interesse genuíno e envolver o leitor em um aspecto da DC Comics que praticamente não teria nada a ver com eles.

Mas já estamos nos alongando demais e a série terminou, essa semana, nos EUA. Foram 12 edições, muitas histórias e mais mundos do que você poderia esperar de um gibi com uma jornalista, uma ex-policial metida a detetive amadora e um monte de temas bem próximos do mundo real em que vivemos. Mas teve, sim, tudo isso e muito mais. Temos uma explicação não exatamente inédita, mas necessária, para todos os vai-e-vens impostos aos universos e personagens DC, algo simples, sutil, conciliador, embora arbitrário em essência. Não faz muito sentido, né? Pois leia o gibi, vai ser facílimo de entender. Basta ficarmos assim: vale tudo na cronologia DC, a depender do gosto do povo E do bom-humor dos editores. Os bons escritores, no meio desse cabo-de-guerra, fazem o melhor que podem, a exemplo do senhor Rucka.

Pena que acabou. Mas nos deixou mais certos ainda de que precisamos de Lois Lane. Afinal, sempre teremos muitas verdades e muitos mundos a serem revelados.


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