A Liga da Justiça antes da Liguinha

A Liga da Justiça de Keith Giffen, J. M. DeMatteis e Kevin Maguire, apelidada por aqui como a Liguinha (tanto de forma carinhosa como desmerecedora), está sendo republicada pela Salvat e pela Panini, em edições de luxo ou em formatos mais acessíveis, o que permite aos leitores novos e veteranos acesso à um dos gibis mais inquietantes já publicados. Seu sucesso se deu ao polarizar opiniões, por conta do tom bem humorado e até mesmo escrachado de suas histórias. Essa é a imagem que ficou da série, afinal, as piadas recorrentes, as situações infames e as caracterizações hilárias de muitos personagens eram marcas registradas dessa formação da Liga. Mas, como muitos poderão rever e outros conferir pela primeira vez, o começo da série não foi exatamente uma comédia.

Na verdade, pelo cenário que gerou essa formação da Liga da Justiça, as expectativas eram outras e o desenvolvimento inicial da série mais incomum ainda. A Liga sempre ocupou o posto de superequipe número 1 da DC Comics, tanto por ser formada pelos maiores e mais populares heróis, quanto pelo escopo de suas histórias. Tudo mudou com a tentativa de humanizar o grupo em 1983, destruindo todo seu aspecto de panteão com uma invasão de marcianos brancos que resultou na perda da Base Satélite, a dissolução da equipe e reorganização com alguns veteranos e um punhado de novatos. Veio a Crise nas Infinitas Terras e suas consequências, a exemplo das mudanças que afastaram Superman, Mulher-Maravilha e outros definitivamente da Liga da Justiça. E com o evento Lendas, produzido por John Ostrander e John Byrne, a DC encerrou o experimento frustrado com a Liga de Detroit, como foi apelidada a formação com os novatos. Tornou-se clara a necessidade de retornar a Liga da Justiça à sua aura de grandeza.

E aí foram geradas duas expectativas. Com o final da Crise, o Multiverso foi desfeito e no Universo singular aconteceu uma mescla de cinco terras sobreviventes. A Nova Terra agregava personagens dessas outras, o que permitia um conceito no mínimo instigante. Heróis de universos diferentes atuando em uma só equipe. Capitão Marvel (Shazam, para os leitores mais novinhos), Besouro Azul, Senhor Destino, das terras S, C e 2, juntamente com os veteranos da Terra 1, Batman e Jonn Jonzz, a Canário Negro (essa tem um pé lá e outro mais pra lá ainda, sendo uma refugiada da Terra 2 na Terra 1, mas esqueça que puxamos esse assunto), Superman e Mulher-Maravilha da Nova Terra e Wally West, ex-Kid Flash e herdeiro do nome e do traje de Barry Allen. Gar Logan, o Mutano, tava lá na origem da nova Liga, mas ao final de Lendas deu tchau e foi embora junto com Kal-El, Diana e Wally. No lugar deles, ficou um personagem irritante, antipático e sacana. O Lanterna Verde. Um deles, na verdade: Guy Gardner, destinado a simbolizar toda uma nova e bizarra era pra Liga da Justiça. E assim surgiu a nova equipe, SEM o “América” que ostentava desde sua estreia em 1960.

Nisso, aconteceu a primeira quebra de expectativa. O próprio conceito e qualquer menção ao Multiverso estavam proibidos em 1987, ano em que essa nova Liga surgiu. Então, apesar de ter heróis de 4 universos diferentes, isso não teve função prática pois eles eram, pra todos os efeitos, personagens da mesma Terra naquela cronologia. Era uma vez a primeira Liga da Justiça Multiversal! Mas a equipe surgiu por causa de uma invasão de Darkseid à Terra, confere? Portanto, se espera que eles continuem lidando com ameaças cósmicas e enfrentem desafios épicos… Né? Também não. Na verdade parece que nem aconteceu a bagaceira toda de Lendas, quando a nova mensal começa. Apokolips e as consequências da invasão foram explorados em outro gibi, o Esquadrão Suicida. Até mesmo um integrante inesperado, o Senhor Milagre, aparece na primeira reunião sem mencionar os acontecimentos de Lendas, embora seja um oponente declarado de Darkseid.

E o que raios foi usado na nova série da Liga?!?

A pós modernidade oitentista. Sim, não pense que editores e equipe criativa disseram BORA LÁ FAZER UMA LIGA DA JUSTIÇA DA GARGALHADA, BORA BUSCAR O SUCESSO FAZENDO O POVO RIR! Os primeiros arcos exploram a desconstrução de instituições, a contestação de paradigmas e as pautas vigentes da geopolítica global.

Tem intriga política, jogos de poder, questões ambientais e a face cínica dos conglomerados multinacionais no focinho de um personagem original, sem vínculos com nenhuma das tais expectativas que falamos. Não era um vilão multiversal nem assecla de Darkseid (embora viesse a ser mostrado um ano depois como beneficiário de tecnologia dos Novos Deuses, mas calma que a gente chega lá), e sim um executivo manipulador decidido a usar a nova Liga da Justiça para seus próprios interesses obscuros. Maxwell Lord, senhoras e senhores. Só que desde a primeira edição, um elemento subversivo começou a puxar a Liga para uma rota inesperada. Lembram do tal Guy Gardner? O sacana irritante? Pois é, a função dele era ser o Coisa/Gavião Arqueiro/Wolverine da nova equipe, só que sem um pingo de heroísmo. Era um seboso daqueles, xenofóbico, machista, misógino e reacionário. Um nojento. E que virou alívio cômico ao ser ridicularizado progressivamente a cada edição. Estava plantada a semente do caos e ao longe era possível ouvir uma risada abafada surgindo…

Mas os temas sérios dominaram os primeiros seis ou sete números da Liga. Terroristas fanáticos invadindo e mantendo reféns na ONU; arsenais e usinas nucleares como alvos de heróis de outra dimensão; ditadores buscando mais poder; experimentos genéticos ameaçando a humanidade. Além de elementos fantásticos, porém “humanos”, como a contestação de autoridade envolvendo o Homem Cinza e os Lordes da Ordem ou os atritos com outra super equipe, os Guardiões Globais. E, claro, as manobras de Max Lord permeando os acontecimentos. Inclusive foi ele quem trouxe dois recrutas para a equipe, sem consultar os heróis. A Dra. Luz, que chegou e saiu quase que imediatamente, e o Gladiador Dourado, criação de Dan Jurgens, literalmente o primeiro personagem original da DC pós-Crise e, portanto, o primeiro novo super-herói da Nova Terra. O Gladiador deveria trazer, pelo que se via em sua mensal solo, um certo nível de drama e de tensão, dados os seus dilemas pessoais, seu comportamento ambicioso e seu conhecimento do futuro. Eis que ele e um certo besouro azulado se tornaram amigos…

Lá pela quarta edição, as presepadas de Guy Gardner foram aumentando e tomando mais espaço nas histórias. O feedback dos leitores encorajou o editorial e a equipe criativa. Cada personagem acabou sendo explorado por essa ótica do humor. Até mesmo o Batman, em toda sua seriedade, acabou servindo ao escracho, afinal tornou-se impossível não rir das tentativas do Morcego em botar ordem na bagunça que ia aumentando. A Canário Negro, por exemplo, foi sendo caracterizada como uma feminista cricri. Besouro Azul e Gladiador foram se tornando chapas que alternavam ações heroicas com tiradas bem humoradas. E os tais temas sérios que direcionavam as tramas foram se tornando cada vez menos importantes. Com a edição 7, o título se tornou a Liga da Justiça Internacional. O tom sério brilhou fortemente. Mas era apenas uma despedida, antes de se apagar de vez.

Só que ao invés de escurecer, aconteceu o inverso. Em plena era pós Watchmen e Cavaleiro das Trevas, com a quase totalidade dos gibis tentando ser sério ou violento ou contestador, a maior superequipe da DC tornou-se… DIVERTIDA.

A cada nova trama, ficava perceptível que tudo aquilo apresentado no começo, intriga política e etc, ia perdendo destaque. Ainda estariam presentes, mas apenas como uma desculpa para colocar os personagens em movimento e poder assim disparar a metralhadora de piadas em 360 graus. A subtrama de Max Lord logo seria resolvida, por volta da edição 12, encerrando qualquer trama longa no título. Os Guardiões Globais ficariam restritos a apenas mais um arco, envolvendo a nação de Bialya, uma paródia do Iraque. O nível das ameaças? SENHOR NEBULOSA, O DECORADOR DE MUNDOS!! LORDE MANGÁ KHAN E O ENCLAVE! LOBO, O MAIORAL!

E não vamos esquecer de dois momentos marcantes: o dia de mudança da Liga para as embaixadas ao redor do globo, quando o Besouro Azul soltou sua emblemática gargalhada BWAHAHAHAHA e o dia em que Batman nocauteou Gardner com um soco! Só quem leu isso na época faz ideia da revolução que simbolizou. E que dividiu opiniões, obviamente. Os que abraçaram e se tornaram fãs da fuleragem oficial na revista da maior equipe da DC. E os que classificaram como “humorzinho” apelativo e degradante, incompatível com o nome da Liga.

Mas mesmo 30 anos depois, fica a pergunta no ar… Se o editor Andrew Helfer e os roteiristas Giffen e DeMatteis tivessem deixado o humor apenas em pitadas aqui e acolá, optando pelas tramas sérias e relevantes das primeiras edições, teríamos visto um gibi sério e bem sucedido? E se tivessem usado elementos multiversais? Ou dado continuidade ao conflito com Apokolips? Teríamos uma Liga da Justiça épica, talvez mais do que nos tempos do Satélite? Especulações à parte, o importante é que o que foi feito permanece relevante até hoje, com uma Liga da Justiça que conseguiu a proeza de realizar uma intervenção no mundo real, fazendo uma geração de leitores… rir. “BWAHAHAHAHAHA”


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