Quadrinhos de super-heróis ainda tomam grande parte de meu volume de leitura, mas, por vezes, buscar alternativas a eles ajuda a manter as ideias oxigenadas e os níveis de exigência elevados. Considerando que já li grande parte do material que fez a fama do selo Vertigo (Sandman, Fábulas, Preacher, etc.), a bola-da-vez são os quadrinhos autorais independentes.
Curiosamente, minhas três últimas leituras fora da seara superpoderosa foram autobiografias com pano-de-fundo histórico, subgênero pelo qual vou criando inesperada predileção: Persépolis (de Marjani Satrapi) e Maus (de Art Spiegelman) foram presentes de um aluno e de um sobrinho, respectivamente. Ontem, foi por iniciativa própria que saí da livraria com um exemplar de O Melhor Que Podíamos Fazer, da vietnamita Thi Bui.
Atribuindo-se árdua dupla missão (fazer as pazes com suas origens asiáticas e aproximar-se afetivamente dos seus pais), Thi Bui esmera-se na criação de um épico de sentimentos represados e coragem extrema. Movida pela dificuldade em tornar interessante o registro oral de sua herança familiar, a autora optou por ilustrá-lo (muito bem, diga-se), cobrindo períodos que vão desde a juventude de seus avós, até seus próprios desafios como mãe – antes, durante e depois dos períodos mais conturbados da história do Vietnam.
O livro começa nos EUA, onde Thi vive com sua família desde a infância. Simultaneamente intrigada e assustada com a pouca entrega emocional de seus pais (ambos profundamente marcados por sua história como refugiados e por tragédias pessoais), ela busca encontrar, em meio aos relatos familiares e de suas poucas memórias próprias da infância na Ásia, razões que expliquem aquele enorme distanciamento afetivo.
É com a mãe, H’ang, que Thi mais avidamente busca por entendimento. Ao mesmo tempo em que se admiram mutuamente, mãe e filha não conseguem dar voz e vazão ao amor que sentem. “Não quero falar sobre o jantar, quando há tantas coisas importantes que nunca dissemos uma para a outra”, confidencia Thi, a certa altura. Com o pai, Nam, a coisa não é muito melhor, embora por motivos diferentes. Há irmãos, irmãs e outros parentes envolvidos na saga da família Bui, mas o pai e a mãe de Thi são os inegáveis protagonistas e objetos das intenções do livro.
Ilustrado em preto, branco e tons que oscilam entre vermelho e marrom, o traço delicado de Bui faz contraponto à discreta complexidade de seu texto. Ainda que usando linguagem simples, ela constrói fortes analogias e momentos de muito impacto, sem perder o fôlego narrativo por uma página que seja. Sua obra é desses materiais a que se lê compulsivamente, virando página após página, até seu bonito e bem-resolvido final.
Talvez ainda seja cedo para afirmar – afinal, foi lançado no segundo semestre de 2017 – mas não seria absurdo enxergar para O Melhor Que Podíamos Fazer um futuro como clássico das HQs autobiográficas, em pé de igualdade com as ilustres obras de Spiegelman e Satrapi mencionadas anteriormente, entre outras. A sensibilidade demonstrada por Thi Bui certamente a qualifica para a proeza e nos faz desejar que ela volte a escrever quadrinhos, sem muita demora.
Roteiro: Thi Bui
Arte: Thi Bui
Editor:
Capa: Thi Bui
Publicação original: The Best We Could Do (março de 2017)
No Brasil: 2017
Nota dos editores: 5.0