Tony Stark nos quadrinhos está com os dias contados?

Já adverte o dito popular: manda quem pode, obedece quem tem juízo. E, no caso das megacorporações do mundo do entretenimento, quem manda é a audiência e quem tem juízo é quem lucra mais. Ou isso é o que as megacorporações querem que a audiência acredite? Com a ascensão e supremacia das adaptações de histórias em quadrinhos para o cinema e canais de streaming, um verdadeiro filão passou a ser explorado pela Marvel e pela DC Comics, na verdade pela Disney e pela Warner. E se os bilhões gerados pelas versões em carne e osso não revertem em bilhões nas vendas de gibis, a influência inevitável dos filmes e séries sobre os personagens nas HQs vem se tornando notória.

Dois casos são bem emblemáticos. O surpreendente sucesso da Mulher-Maravilha de Gal Gadot e Patty Jenkins e a também inesperada ascensão de Tony Stark, o Homem de Ferro, interpretado por Robert Downey Jr., ao topo do panteão da cultura pop em menos de uma década. Embora Diana de Themyscira tenha mais de oito décadas de gibis, séries e animações, sendo parte da trindade da DC e reconhecida automaticamente em boa parte do mundo, sua aparição em Batman versus Superman foi a única parte em que os elogios foram unânimes, uma primeira impressão que foi confirmada e sacramentada em seu próprio longa metragem, aprovado pela crítica, público e bilheteria. Isso revigorou e expandiu sua presença no imaginário popular, para toda uma nova geração, o que naturalmente fez brilhar os olhinhos dos executivos da Warner.

Já Tony Stark, também parte de outra trindade, a dos Vingadores nos quadrinhos, sempre foi querido pelos leitores, mas nem mesmo nos gibis esteve no nível de popularidade do Homem-Aranha, do Hulk ou de “novatos” tipo o Wolverine. Estava lá na sua mensal vivendo suas desventuras e aventuras, nos anos 2000 ganhou destaque graças a uma sequência de histórias iniciada em Extremis, de Warren Ellis e Adi Granov, também com a subestimada fase onde se tornou Secretário de Defesa dos EUA escrita por Charles Knauf, depois com a Guerra Civil de Mark Millar e daí em diante se tornou onipresente como o líder da SHIELD, caçando heróis que não aceitaram o Registro de Super-Seres. Provavelmente, toda essa exposição teria lhe garantido um status mais elevado por algum tempo nos quadrinhos, mas eventualmente ele voltaria ao seu cantinho de sempre. Mas veio 2008 e…

Seja honesto consigo mesmo: se ali pelos idos de 2007, 2008, alguém te dissesse que um filme do Homem de Ferro daria início ao império da Marvel nos cinemas (e agora, nos streamings) e mais, que Tony Stark seria um dos personagens mais amados da cultura pop graças ao (na época) pouco relevante ator Robert Downey Jr., você acreditaria? Pois é, ninguém daria crédito a isso.

Pois isso tudo aconteceu, como sabemos hoje em dia. Inclusive, ninguém acreditaria que Stark/Homem de Ferro pudesse fazer o mesmo por Downey Jr., que se tornou um dos mais bem pagos e mais populares atores da atualidade, após décadas de altos e (muitos) baixos na carreira. De toda forma, tá aí o Vingador Dourado como um dos mais queridos e rentáveis personagens em várias mídias.

O que nos traz de volta aos gibis. Como já foi enfatizado, todo esse sucesso bilionário dos super-heróis adaptados pra cinema e séries não exatamente reverteu em aumento nas vendas dos quadrinhos nos EUA. Mas causou impactos, declarados ou não, nos personagens. E esses dois, dos quais estamos tratando, foram os que mais tiveram interferência decorrente das suas versões adaptadas.

A PRIMEIRA HEROÍNA

Começando pela Mulher-Maravilha. Com a aprovação irrestrita do primeiro filme da Princesa Amazona, além da turbulenta resposta do público e da crítica às abordagens e caracterizações de Batman e Superman, o foco em Diana levou o editorial da DC Comics a considerar algo antes impensável para a personagem. Ela foi escolhida para se tornar A heroína da DC Comics. Sim, sabemos que ela sempre foi a principal entre as personagens femininas. Mas, agora, pegaram um aspecto do filme (que já havia sido abordado ao longo de décadas no quadrinhos, sejamos justos, a exemplo de Reino do Amanhã), o fato dela não envelhecer como um ser humano normal, usando também nos gibis.

Diana Prince se tornou a primeira super-heroína, o primeiro super ser do universo regular, a Terra 0 ou Terra do Metaverso como descreveu Geoff Johns em Relógio do Juízo Final, que teria inspirado e dado início à Era de Ouro dos super heróis no universo DC. Isso não é pouca coisa. Serviu, inclusive, para acabar com um vai e vem criado lá nos anos 1950 e 1960, depois agravado em 1986, que deixava sempre definido/indefinido quem teria sido o primeiro super-herói da editora. Superman, Vingador Escarlate, Lanterna Verde Alan Scott. Sempre teve essa indecisão, a depender do período editorial e dos eventos nível Crise.

Agora, o sucesso nos cinemas levou os mandachuvas a pressionarem o editorial que por sua vez jogou a batata quente pros roteiristas. E não é que o negócio deu certo? Uma saída elegante, usar uma personagem mítica, com um pé no sobrenatural, cuja identidade secreta usada em alguns períodos nem faz tanta diferença assim, o que permite tranquilamente a convivência e existência da Mulher-Maravilha através de décadas, desde a Era de Ouro, passando por vários períodos, validando também personagens e conceitos que só funcionam bem mesmo em épocas bem específicas, tornando mais coerente a história do universo DC principal. Ela tornou-se a primeira e isso nem gera conflito editorial, nem prejudica a cronologia, além de valorizar uma personagem que sempre mereceu mais do que teve nos quadrinhos.

Mas, o que funciona aqui, nem sempre funciona lá.

Tony Stark morreu enfrentando Thanos, no quarto filme dos Vingadores. Um evento glorioso, épico, celebrado e reverenciado pela legião de fãs das aventuras do Marvel Studios. O legado dele continua a ser explorado em filmes do Homem-Aranha, vai render duas séries, uma com James Rhodes, o Máquina de Combate, e outra com Riri Williams, a Coração de Ferro. Encerrando a jornada do Homem de Ferro nos cinemas, a Marvel gerou impacto e repercussões duradouras. E nos gibis?

POBRE TONY STARK?

Quem acompanha as histórias em quadrinhos deve ter percebido um padrão, desde a morte do Tony de Downey Jr., se formando lentamente.

São suposições, é claro, mas foi estranho como, nos três anos que antecederam Vingadores: Ultimato, as aparições e número de revistas onde Tony Stark apareciam foram sendo reduzidas. Sem falar na relevância e interferência do personagem no aspecto geral do universo Marvel quadrinístico. Brian Bendis escrevia duas mensais, Invencible Iron Man e International Iron Man, que seguiram para uma trama na qual Stark era dado como morto, sendo substituído por Victor Von Doom, o Infame Homem de Ferro e Riri Williams, uma adolescente prodígio da engenharia, que passou um tempo como titular da mensal Homem de Ferro, até ganhar título próprio como a Coração de Ferro.

Tony voltou, em uma mensal apenas, escrita por Dan Slott, que teve seu encerramento pouco depois da estreia do filme onde sua contraparte de carne e osso morre. Veio o evento Homem de Ferro 2020, com várias minis, meses depois a nova mensal, escrita por Chris Cantwell.

A situação, desde então?

Parece que a Marvel não sabe mais o que fazer com o Tony Stark dos gibis.

A morte de sua versão cinematográfica deu certo até demais. Nos quadrinhos, AINDA não o mataram, mas o sujeito só aparece na mensal dos Vingadores (praticamente como o mecânico da equipe, aqui e acolá tem um destaque, mas nada que chegue perto da influência que sempre teve) e na sua nova mensal, que, convenhamos, está deprimente. Histórias onde ele praticamente virou coadjuvante de um punhado de heróis de 4º escalão, enfrentando uma mega-ameaça cósmica que dá sono, revivendo alguns plots desgastados (está muito ferido e não consegue sair da armadura, senão acaba morrendo) e, mais recentemente, está sendo anunciado sem a menor repercussão que vai ascender à divindade e se tornar um Homem de Ferro Cósmico.

Se o sucesso da Mulher-Maravilha nos cinemas fez bem à Diana dos quadrinhos, o sucesso do Homem de Ferro nas telonas condenou Tony Stark nos gibis.

A menos que haja um esforço para mudar isso, vão fazer pior do que matar o herói blindado. Vão continuar escanteando até ele involuir ao estágio pré-Massacre Marvel em meados de 1996, quando passou um tempo sendo uma sombra de si mesmo, um período inédito no Brasil em que uma versão adolescente de Tony usando o traje vermelho e dourado não emplacou, fazendo com que os leitores praticamente ignorassem o personagem.

Enquanto acompanhamos os desdobramentos das publicações de Mulher-Maravilha e Homem de Ferro nos EUA, vale a pena questionar se quem manda mesmo é o público ou se são os “cabeças” dos estúdios. Se eles estão atendendo o gosto do freguês, significa que eles presumem que um Tony Stark bom, é um Tony Stark “morto”?


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